Na manhã seguinte, acordei e encontrei o Selo do Império Mujulaain na cômoda. A bonita pedra de cor creme tinha estrias dourado-alaranjadas e pendia de uma fita macia. Peguei o pesado objeto para examiná-lo mais de perto e imediatamente percebi as palavras esculpidas que Ren dissera significarem sabedoria, vigilância, bravura e compaixão. Uma flor de lótus desabrochava na base do Selo. Os detalhes no desenho demonstravam uma habilidade altamente sofisticada. Era lindo.
Se o pai era tão fiel a estas palavras quanto Ren diz que era, deve ter sido um bom rei.
Por um minuto, deixei minha imaginação criar uma versão mais velha de Ren como rei. Podia facilmente visualizá-lo liderando outras pessoas. Ele tinha algo que me fazia querer confiar nele e segui-lo. Sorri ironicamente. As mulheres o seguiriam até em um precipício.
O Sr. Kadam servira ao seu príncipe por mais de 300 anos. A ideia de que Ren podia inspirar uma vida de lealdade era extraordinária. Deixei de lado minhas especulações e olhei novamente com admiração para o Selo de vários séculos.
Abri a bolsa que o Sr. Kadam havia deixado e descobri que ela continha câmeras, tanto digital quanto descartável, fósforos, algumas ferramentas para cavar, lanternas, um canivete, aqueles tubinhos que emitem luz quando são agitados, papel e carvão para desenho, comida, água, mapas e alguns outros itens. Vários deles haviam sido colocados em bolsas plásticas à prova d agua. Testei o peso da bolsa e descobri que era bem razoável.
Abri o closet, corri os dedos outra vez pelo meu lindo vestido e suspirei. Vesti jeans e camiseta, calcei as novas botas de caminhada e peguei os tênis.
No primeiro andar, encontrei o Sr. Kadam cortando mangas para o café da manhã.
— Bom dia, Srta. Kelsey — disse ele, e apontou para meu pescoço. — Vejo que a senhorita encontrou o Selo.
— Encontrei, sim. É muito bonito, mas um pouquinho pesado. — Coloquei algumas fatias de manga em meu prato e despejei um pouco de chocolate quente caseiro em uma caneca. — O senhor cuidou dele durante todos esses anos?
— Sim. Ele é muito precioso para mim. O Selo na verdade foi feito na China, não na Índia. Foi um presente dado ao avô de Ren. Selos antigos assim são bem raros. É feito de pedra Shoushan, que, contrariando a crença popular, não é um tipo de jade. Os chineses acreditavam que Shoushans eram ovos de fênix de cores vivas encontrados em ninhos no alto das montanhas. Homens que arriscavam a vida para localizá-los e capturá-los recebiam honras, glória e riqueza.
— Interessante — comentei, instigando-o a continuar seu relato.
— Somente os homens mais ricos tinham objetos entalhados nesse tipo de pedra. Receber um de presente foi uma grande honra para o avô de Ren. Este é um tesouro de família de valor inestimável. A boa notícia para você é: dizem que ter ou usar alguma coisa feita desse tipo de pedra dá sorte. Talvez a ajude na jornada mais do que você imagina.
— Parece que a família de Ren era muito especial.
— De fato era, Srta. Kelsey.
Tínhamos acabado de nos sentar para tomar iogurte com manga quando Ren entrou, sorrateiro, na cozinha e pôs a cabeça no meu colo.
Cocei suas orelhas.
— Que bom que você se juntou a nós. Está ansioso para pôr o pé na estrada? Deve estar empolgado por se ver tão perto de quebrar a maldição.
Ele continuou a me olhar com intensidade, como se estivesse impaciente para sair, mas eu não queria correr. Acalmei-o com pedaços de manga. Momentaneamente satisfeito, ele se sentou e saboreou o petisco, lambendo o sumo de meus dedos.
Eu ri.
— Pare! Isso faz cócegas! — Ele me ignorou, passou para o meu braço e me lambeu quase até a manga da camiseta. — Ei, eca, Ren! Está bem. Está bem. Vamos.
Lavei meu braço, olhei a vista da propriedade uma última vez e segui para a garagem. O Sr. Kadam já estava do lado de fora com Ren. Ele pegou a bolsa da minha mão, colocou-a no banco do carona e então segurou a porta enquanto eu subia no Jeep.
— Tome cuidado, Srta. Kelsey — advertiu o Sr. Kadam. — Ren vai protegê-la, porém são muitos os perigos no caminho. Contra alguns estamos prevenidos, mas estou certo de que vocês irão enfrentar muitos dos quais não tenho ciência. Tenha cautela.
— Eu terei. Tomara que a gente volte logo.
Fechei o vidro da janela e saí da garagem dando ré. O GPS começou a soar de novo, dizendo-me para onde ir. Mais uma vez, senti uma profunda gratidão pelo Sr. Kadam. Ren e eu estaríamos totalmente perdidos sem ele.
A viagem não teve nada de memorável. O trânsito estava muito tranquilo na primeira hora. Começou a ganhar intensidade à medida que íamos nos aproximando de Mumbai, mas a essa altura eu havia quase me acostumado a dirigir do outro lado da rua. Seguimos por cerca de quatro horas antes de eu parar no fim de uma estrada de terra que delimita o parque.
— É aqui que devemos entrar. Segundo o mapa, vamos levar duas horas e meia andando até a caverna de Kanheri. — Consultei o relógio e continuei: — Isso nos deixa com um intervalo de cerca de duas horas antes que anoiteça e os turistas vão embora.
Ren saltou do carro e me seguiu para o parque, para um local na sombra. Deitou-se na grama e eu me sentei perto dele. A princípio, usei seu corpo como apoio para as costas e então, gradualmente, fui relaxando encostada nele, usando suas costas como almofada.
Olhando para o alto das árvores, comecei a falar. Contei a Ren como fora crescer com meus pais, recordei as visitas à minha avó e as viagens de férias da família.
— Mamãe era enfermeira em uma instituição para idosos, mas depois resolveu ficar em casa e cuidar de mim — expliquei, voltando ao passado e às doces lembranças. — Ela fazia o melhor cookie com gotas de chocolate e creme de amendoim do mundo. Achava que demonstrar amor significava fazer cookies em casa e provavelmente foi esse o motivo de eu ter sido uma criança gorducha.
Ren ouvia com atenção.
— Papai era o típico pai que faz churrasco no quintal. Era professor de matemática e acho que passou parte disso para mim, pois também gosto de matemática. Todos nós adorávamos ler e tínhamos uma pequena biblioteca em casa. Os livros do Dr. Seuss eram os meus preferidos. Mesmo agora eu quase posso sentir a presença dos meus pais quando pego um livro.
As lembranças me emocionavam, mas eu não queria parar de falar.
— Quando viajávamos, eles gostavam de se hospedar em pousadas simples, e eu ficava com um quarto só para mim. Viajamos praticamente por todo o estado e conhecemos fazendas de maçãs e minas antigas, cidades inspiradas na Bavária que serviam panquecas alemãs no café da manhã, o mar e as montanhas. Acho que você se apaixonaria facilmente pelo Oregon. Não viajei tanto quanto você, mas não posso imaginar um lugar mais bonito do que o estado onde nasci.
Mais tarde, falei sobre a escola e meu sonho de ir para a universidade, embora eu não pudesse pagar mais do que uma faculdade comunitária. Falei até do acidente dos meus pais, de como me senti sozinha quando aconteceu e de como era viver com uma família adotiva.
A cauda de Ren batia de um lado para outro, por isso eu sabia que ele estava acordado e ouvindo, o que me surpreendeu, pois achei que cairia no sono, entediado com a minha tagarelice. Por fim, minha voz foi baixando, eu mesma ficando com sono, e acabei cochilando no calor até sentir Ren se mover e ficar de pé.
Então me espreguicei.
— Já é hora de ir, não é? Muito bem. Você vai na frente.
Iniciamos a caminhada pelo parque. A vegetação ali era muito mais aberta do que no Santuário da Vida Selvagem Yawal. As árvores eram mais espaçadas. Lindas flores púrpuras cobriam as colinas. Passamos por tecas e bambus, mas havia outros tipos que eu não conseguia identificar. Vários animais atravessavam em disparada à nossa frente. Eu vi coelhos, cervos e porcos-espinhos. Olhando para os galhos mais altos, podia encontrar centenas de pássaros, numa grande variedade de cores.
Enquanto andávamos sob um grupo de árvores particularmente denso, ouvi grunhidos estranhos e assustados e avistei macacos Rhesus se balançando nas alturas. Eram inofensivos, mas, à medida que nos dirigíamos mais para o centro do parque, vi outras criaturas mais perigosas. Eu me desviei de uma píton gigante que, pendurada em uma árvore, nos observava com olhos negros e imóveis. Lagartos-monitores enormes de língua bifurcada e corpo comprido cruzavam correndo o nosso caminho, sibilando. Besouros grandes e gordos zumbiam preguiçosamente à nossa volta, trombavam, atarantados, em objetos em pleno voo e então prosseguiam sua jornada.
Era tudo bonito, mas ao mesmo tempo assustador, e era bom ter um tigre por perto. De vez em quando, Ren saía do caminho e circulava um trecho, o que me levava a pensar que ele estava evitando certos lugares ou talvez, estremeci, certas coisas.
Depois de cerca de duas horas de caminhada, chegamos perto da caverna Kanheri, nos limites da selva. A floresta havia se tornado mais esparsa, abrindo-se para uma colina sem árvores. Degraus de pedra levavam colina acima, até a entrada, mas ainda estávamos muito distantes para ter mais do que um simples vislumbre da caverna. Comecei a me dirigir aos degraus, mas Ren saltou à minha frente e me cutucou com o focinho, indicando que eu voltasse para as árvores.
— Quer esperar mais um pouco? Certo. Vamos esperar.
Sentados sob a proteção de uns arbustos, esperamos por uma hora. Ligeiramente impaciente, vi turistas saírem da caverna, descerem os degraus devagar e seguirem para o estacionamento. Pude ouvi-los tagarelando enquanto se afastavam em seus carros.
— Que pena que não pudemos vir de carro — observei, com inveja. — Teríamos poupado um bocado de esforço. Mas acho que as pessoas não entenderiam por que um tigre estava me seguindo por aí. Sem contar que o guarda florestal ficaria de olho na gente.
Finalmente o sol se pôs e as pessoas se foram. Ren deixou cautelosamente a proteção das árvores e farejou o ar. Satisfeito, começou a se dirigir aos degraus de pedra entalhados na colina pedregosa. A subida era longa e eu estava sem fôlego quando chegamos lá em cima.
Assim que entramos na caverna, deparamos com um bunker de pedra aberto, com cômodos que me lembravam os favos de uma colmeia, todos idênticos. Um bloco de pedra do tamanho de uma cama pequena encontrava-se posicionado do lado esquerdo de cada cômodo e prateleiras escavadas localizavam-se nas paredes dos fundos. Uma placa informava que a caverna era parte de um povoamento budista que datava do século III.
Não é estranho que estejamos procurando uma profecia hindu em um povoamento budista?, pensei ao seguirmos em frente. Mas, afinal, tudo nesta aventura é mesmo um pouco estranho.
Adentrando ainda mais a caverna, notei longos fossos de pedra conectados por arcos que corriam de um poço de pedra central e avançavam – provavelmente mais para o alto da montanha. Uma placa dizia que os fossos já haviam sido usados como aqueduto, para levar água até aquela área.
Chegando à câmara principal, corri as mãos sobre os sulcos profundos da parede elaboradamente entalhada. Sinais da antiga escrita hindu e hieróglifos haviam sido gravados nas paredes.
Os vestígios de um teto, ainda mantido em alguns pontos por pilares de pedra, lançavam sombras no local. Estátuas haviam sido entalhadas nas colunas de pedra e, enquanto andávamos, eu mantinha os olhos nelas para me certificar de que não deixariam os restos do teto desabar sobre nós.
Ren prosseguiu até os fundos da câmara principal, na direção da boca negra e escancarada da caverna que avançava ainda mais fundo na colina. Eu o segui e transpus a abertura, alcançando um piso arenoso em um amplo espaço circular. Fazendo uma pausa, deixei que meus olhos se ajustassem por um minuto.
A caverna circular tinha muitas aberturas. A luz que entrava, suficiente apenas para revelar a silhueta da abertura, não conseguia penetrar nos corredores adiante e ia enfraquecendo rapidamente à medida que o sol se punha.
Peguei uma lanterna e perguntei:
— O que fazemos agora?
Ren se dirigiu para o primeiro vão sombrio e desapareceu na escuridão. Seguindo-o, abaixei-me para entrar na pequena câmara repleta de prateleiras de pedra. Perguntei-me se algum dia teria sido usada como biblioteca. Depois de percorrê-la, voltei à entrada, esperando ver uma placa gigante que dissesse “Profecia de Durga aqui!”, e de repente senti uma mão em meu ombro. Dei um pulo com o toque de Ren.
— Não faça isso! Não pode me avisar antes?
— Desculpe, Kells. Precisamos procurar em cada uma das cavernas um símbolo que pareça o Selo. Você procura em cima e eu, embaixo.
Ele apertou brevemente meu ombro e se metamorfoseou em tigre.
Estremeci. Acho que nunca vou me acostumar com isso.
Não vimos nenhum entalhe na câmara, então passamos para a seguinte e depois para a outra. No quarto vão, procuramos com mais cuidado, pois a caverna era cheia de glifos. Ficamos ali por pelo menos uma hora. Tampouco tivemos sorte na quinta caverna.
A sexta estava vazia. Nem sequer uma prateleira de pedra decorava as paredes, mas foi na sétima abertura que encontramos algo. O vão levava a uma câmara muito menor que as outras. Era comprida e estreita e tinha algumas prateleiras à semelhança das outras cavernas. Ren encontrou o entalhe debaixo de uma das prateleiras. Eu provavelmente não o teria visto se estivesse procurando sozinha.
Ele grunhiu suavemente para mim e enfiou o nariz sob a laje de pedra.
— O que foi? — perguntei e me abaixei.
De fato, debaixo da prateleira na parede dos fundos da câmara havia um entalhe que reproduzia perfeitamente o Selo.
— Bem, acho que é ele. Cruze os dedos, ou melhor, as garras.
Tirei o Selo do meu pescoço e o coloquei sobre o entalhe, ajeitando-o até sentir que se encaixava com um clique. Esperei, mas nada aconteceu.
Tentei girar o Selo e dessa vez ouvi um chiado mecânico por trás da parede. Depois de uma volta completa, senti resistência e ouvi um silvo abafado. A poeira subiu pelas bordas da parede, revelando que na verdade se tratava de uma porta. Um ronco grave e abafado sacudiu a porta à medida que ela lentamente deslizava para trás.
Tirei o Selo do encaixe, tornei a colocá-lo em meu pescoço e dirigi o fraco feixe de luz para além da porta. Vi apenas mais paredes. Ren me cutucou com o focinho, fazendo-me abrir espaço, e entrou primeiro. Eu me mantinha o mais perto possível dele e umas duas vezes quase tropecei em suas patas.
Voltando o foco da lanterna para a parede, encontrei uma tocha presa a um suporte de metal. Peguei alguns fósforos e fiquei surpresa por conseguir acendê-la quase imediatamente. A chama iluminou o corredor muito melhor do que minha modesta lanterna.
Estávamos no topo de uma escada sinuosa.
Espiei com cautela por sobre a borda, vendo um abismo escuro. Como o único caminho era a escada, peguei a tocha e iniciei a descida. Um clique soou às nossas costas e, com um ligeiro silvo, a porta se fechou, trancando-nos ali.
— Ótimo — murmurei. — Vamos nos preocupar com isso só mais tarde.
Ren simplesmente me olhou e esfregou a cabeça na minha perna. Massageei o pelo de sua nuca e continuamos a descer os degraus.
Ele se colocou no lado externo da escada, o que me deixava colada à parede enquanto descíamos. Eu não tinha fobia de altura, mas uma passagem secreta, degraus estreitos, um abismo escuro e nenhum corrimão com certeza estavam me apavorando. Fiquei grata por ele ficar com o lado mais perigoso.
Descíamos devagar e meu braço começou a doer por causa da tocha. Mudei-a para a outra mão, tomando cuidado para não pingar azeite quente em Ren. Quando finalmente alcançamos a base poeirenta da escada, outra passagem escura se abriu diante de nós e deparamos com uma bifurcação. Soltei um gemido.
— Que caminho seguimos agora?
Ren entrou em um dos corredores e farejou o ar. Então passou ao outro e ergueu a cabeça para farejar novamente. Voltando ao primeiro, ele prosseguiu. Eu também farejei o ar, só para ver se conseguia perceber o mesmo que ele, mas a única coisa que senti foi um odor acre e insalubre, parecido com enxofre. O cheiro amargo impregnava a caverna e parecia se intensificar a cada curva que fazíamos.
Avançamos quase no escuro, serpenteando pelo labirinto subterrâneo. A tocha lançava uma luz bruxuleante nas paredes, criando sombras assustadoras que dançavam em círculos sinistros. Enquanto prosseguíamos pelo labirinto lúgubre, encontramos várias áreas abertas onde os caminhos se ramificavam. Ren tinha que parar e cheirar cada passagem antes de escolher a que ele achava que nos levaria na direção certa.
Pouco depois de passar por uma dessas áreas abertas, um som aterrorizante sacudiu a passagem. Um martelar metálico soou bem alto e um portão de ferro com pontas afiadas cravou-se no chão logo atrás de mim. Girei rapidamente e gritei de medo. Nós não só estávamos em um labirinto antigo e escuro como estávamos em um labirinto antigo e escuro cheio de armadilhas.
Ren veio para o meu lado e se manteve bem perto, o suficiente para que eu mantivesse a mão em seu pescoço. Cravei os dedos em seu pelo e segurei com força para me tranquilizar. Três curvas depois, ouvi um zumbido abafado vindo de uma das passagens à frente. O zumbido aumentava de volume à medida que nos aproximávamos.
Dobrando uma esquina, Ren parou e olhou diretamente à frente. Seu pelo se eriçou e espetou os meus dedos. Ergui a tocha para ver por que ele havia parado e agarrei com força seu pelo ao mesmo tempo que arregalava os olhos e começava a tremer.
O corredor adiante estava se mexendo. Besouros negros gigantes, do tamanho de bolas de beisebol, subiam preguiçosamente uns sobre os outros, obstruindo a passagem à nossa frente. As estranhas aberrações pareciam limitar seus movimentos àquele corredor.
— É... Ren? Tem certeza de que precisamos ir naquela direção? Esta outra passagem parece um pouco melhor.
Ele deu um passo, aproximando-se da esquina.
Relutante, eu o segui. Os besouros tinham exosqueletos pretos e brilhantes, seis pernas peludas, antenas tremulantes e duas mandíbulas pontudas na frente que estalavam, abrindo-se e fechando-se como tesouras afiadas. Alguns deles abriam asas negras espessas e zumbiam ruidosamente ao voar para a parede oposta. As pernas espinhentas de outros besouros prendiam-se ao teto.
Olhei para Ren e engoli em seco quando ele avançou, determinado a atravessar a passagem.
Ele se virou para trás e me olhou.
— Está bem, Ren. Eu vou. Mas vou correr o caminho todo. Tente me acompanhar.
Dei alguns passos para trás, segurei com mais força a tocha e disparei à frente. Estreitando os olhos, corri com os lábios apertados, um grito no fundo da garganta o tempo todo. Atravessei a passagem o mais rápido possível e quase perdi o equilíbrio algumas vezes, quando minhas botas patinavam sobre vários besouros ao mesmo tempo, esmagando-os. Uma imagem horrível cruzou minha mente: cair de cara naquele monte de insetos. Decidi tomar mais cuidado com os pontos onde pisava.
Tinha a sensação de estar correndo em um rolo gigante de plástico bolha e cada passo meu estourava várias bolhas enormes. Os besouros explodiam como sachês de ketchup e espirravam uma gosma verde em todas as direções. Isso, naturalmente, perturbou os outros besouros.
Vários levantaram voo e começaram a enxamear em torno do meu corpo, aterrissando na minha calça, na minha blusa e no meu cabelo. Eu conseguia desviá-los do rosto com a mão livre, que várias vezes foi espetada por suas mandíbulas.
Chegando finalmente ao outro lado, comecei a me sacudir convulsivamente para me livrar de quaisquer possíveis caronas. Tive que arrancar com a mão alguns que não queriam se soltar, inclusive um que subia pelo meu rabo de cavalo.
Então comecei a limpar a sola das botas na parede enquanto tentava ver Ren.
Ele corria em disparada pela passagem, que continuava a zumbir, e, com um grande salto, aterrissou ao meu lado, sacudindo-se violentamente. Vários besouros ainda se agarravam ao seu pelo, de modo que tive que empurrá-los com o cabo da tocha. Um deles havia beliscado sua orelha com força suficiente para fazê-la sangrar. Para minha sorte, eu conseguira atravessar sem que nenhum me beliscasse a ponto de rasgar a pele.
— Acho que usar roupas ajuda, Ren. Eles acabam beliscando as roupas em vez da pele. Pobre tigre. Você tem besouros esmagados em todas as patas. Eca! Pelo menos eu tenho a vantagem das botas.
Ele sacudiu as patas, uma de cada vez, e eu o ajudei a tirar corpos de besouros dos espaços entre seus dedos. Estremecendo uma última vez, acelerei o passo para pôr o máximo de distância possível entre os besouros e nós.
Cerca de 10 curvas depois, pisei em uma pedra que afundou no chão. Paralisada, esperei que a próxima armadilha fosse acionada. As paredes começaram a se sacudir e pequenos painéis de metal se projetaram delas, fazendo com que lanças de metal, pontudas e afiadas, surgissem de ambos os lados. Deixei escapar um gemido.
Além das lanças, a armadilha também consistia em um óleo negro e viscoso que jorrava de canos de pedra, cobrindo o chão.
Ren assumiu a forma humana.
— Tem veneno na ponta das lanças, Kelsey. Posso sentir o cheiro. Fique no meio. Tem espaço suficiente para passarmos, mas não se deixe nem mesmo arranhar por estas pontas.
Dei outra olhada nas lanças compridas e pontudas e estremeci.
— Mas e se eu escorregar?
— Segure com força o meu pelo. Vou usar minhas garras como âncoras enquanto avançamos bem devagar. Não corra agora.
Ren voltou à forma de tigre. Ajeitei a mochila e me agarrei com força ao pelo de sua nuca. Ele deu um passo cauteloso na poça de óleo, testando-a primeiro com uma das patas. Ela deslizou um pouco e eu vi as garras emergirem e mergulharem no óleo e depois no piso de terra.
Ele então as cravou com força no chão escorregadio. Depois de firmar a perna, ele deu outro passo e firmou as garras da outra pata. Depois que essa pata estava apoiada com firmeza, ele teve que puxar com força para erguer a outra pata.
Era um processo meticuloso e tedioso. Cada lança letal estava posicionada a intervalos aleatórios, de modo que eu não podia nem me acostumar a um ritmo. Era preciso concentrar toda a atenção nelas. Havia uma na altura da minha panturrilha, outras perto do pescoço, da cabeça, da barriga. Comecei a contar e parei quando cheguei a 50. Todo o meu corpo tremia por causa do esforço de contrair os músculos e me mover, rígida, por tanto tempo. Um passo em falso e eu estaria morta.
Felizmente Ren estava avançando bem devagar, pois mal havia espaço para andarmos lado a lado. Tínhamos apenas uns 2 centímetros de espaço livre de cada lado. Eu dava cada passo com todo o cuidado. O suor escorria pelo meu rosto. Mais ou menos na metade do caminho, soltei um grito. Devo ter pisado em um local particularmente escorregadio, pois minha bota
deslizou. Meu joelho se dobrou e eu cambaleei.
Havia uma ponta de ferro na altura do meu peito, mas no último segundo virei o corpo e ela se cravou na mochila, e não no meu braço. Ren ficou paralisado, esperando pacientemente que eu me endireitasse.
Arquejei e me ergui, um membro trêmulo de cada vez. Foi um milagre eu não acabar empalada. Quando Ren emitiu um gemido, eu lhe dei tapinhas nas costas.
— Estou bem — tranquilizei-o.
Tive sorte, muita sorte. Prosseguimos ainda mais devagar e por fim emergimos na outra extremidade, trêmulos porém salvos. Deixei-me cair no chão de terra e gemi, esfregando meu pescoço rígido.
— Depois das lanças, os besouros não parecem assim tão ruins. Acho que eu prefiro passar por eles de novo a enfrentar essas aí.
Ren lambeu meu braço e fiz um carinho em sua cabeça.
Após um rápido descanso, prosseguimos.
Atravessamos várias outras passagens sem que nada acontecesse. Eu estava começando a baixar a guarda quando ouvi um barulho e uma porta afundou atrás de nós. Outra começou a descer à frente, e corremos para atravessá-la, mas não conseguimos. Bem, Ren poderia ter atravessado, mas ele não iria sem mim.
Um ruído gorgolejante começou a soar em canos acima de nossas cabeças e um painel se abriu no teto. Um momento depois, fomos lançados ao chão por uma torrente de água que caiu sobre nós. Ela apagou nossa tocha e rapidamente começou a encher a câmara. A água já estava nos meus joelhos quando consegui me pôr de pé novamente. Abri um zíper da mochila, tateando cegamente. Encontrando um tubo comprido, dei-lhe uma batida, sacudi-o e o líquido ali dentro começou a brilhar. A luz amarela tingiu o pelo branco de Ren.
— O que vamos fazer? Você sabe nadar? Vai cobrir sua cabeça primeiro!
Ren se transformou em homem.
— Os tigres sabem nadar. Posso prender a respiração mais tempo como tigre do que como homem.
A água agora estava na nossa cintura e ele rapidamente me puxou além do cano de onde a água jorrava até a porta à nossa frente. Quando a alcançamos, eu já estava flutuando. Ren mergulhou, procurando uma saída.
Quando sua cabeça reemergiu, ele gritou:
— Tem outra marca do Selo na porta. Tente inserir o Selo e girá-lo, como você fez antes!
Assenti e respirei fundo. Debaixo da água, tateei ao longo da porta, procurando a marca. Quando finalmente a encontrei, estava ficando sem fôlego. Lutando para chegar à superfície, bati com força as pernas, sobrecarregada com a mochila pesada e o Selo que pendia do meu pescoço. Ren estendeu os braços debaixo da água, agarrou a mochila e me puxou para a superfície.
Agora estávamos flutuando perto do teto. Iríamos nos afogar a qualquer instante. Respirei fundo algumas vezes.
— Você consegue, Kells. Tente de novo.
Enchi os pulmões mais uma vez e arranquei o Selo do pescoço. Ren soltou a mochila e eu mergulhei novamente, tomando impulso até a base da porta. Pressionei o Selo no sulco e o girei para um lado e para outro, mas ele não se moveu.
Ren havia voltado à forma felina e agora descia nadando até mim. Suas patas rasgavam a água, e o movimento jogava o pelo de seu rosto para trás, dando-lhe uma aparência assustadora, como um monstro marinho branco listrado. A carranca de dentes pontudos também não ajudava. Eu estava ficando sem ar outra vez, mas sabia que a câmara fora inundada e que não havia mais opções.
Entrei em pânico e comecei a pensar o pior. Eu morreria aqui. Nunca seria encontrada. Não teria um enterro. Qual seria a sensação de me afogar? Seria rápido. Só leva um minuto ou dois. Meu cadáver ficaria inchado, flutuando para sempre perto do corpo de tigre de Ren. Aqueles besouros horríveis entrariam aqui e comeriam o meu corpo? De alguma forma, isso parecia pior do que a morte em si. Ren podia prender o fôlego por mais tempo. Ele me veria morrer. Imaginei como se sentiria com isso. Lamentaria? Sentiria culpa? Será que ele se bateria contra a porta?
Lutei contra a vontade desesperada de nadar para a superfície. Não havia mais superfície. Não havia mais ar. Frustrada e apavorada, esmurrei o Selo e senti um leve movimento. Bati novamente, com mais força, e ouvi um barulho. A porta finalmente começou a se levantar e o Selo caiu.
Estendi o braço em desespero, mal conseguindo agarrar a fita entre dois dedos enquanto a água jorrava pela porta, levando-nos com ela. A torrente nos jogou no corredor seguinte e então escorreu por buracos de drenagem, deixando o chão encharcado e lamacento.
Arquejei e tossi, inspirando o ar em grandes golfadas. Olhei para Ren, ri e então tossi novamente. Mesmo engasgando, eu ainda ria.
— Ren — riso-tosse — você está parecendo um — tosse-tosse-riso — gato afogado!
Ele não deve ter achado graça. Ren bufou, veio até mim e sacudiu-se como um cachorro, espalhando água e lama por toda parte. Seu pelo projetava-se como agulhas molhadas.
— Ei! Muito obrigada! Ah, não tem problema. Ainda assim é engraçado.
Tentei espremer a água de minhas roupas, tornei a colocar o Selo no pescoço e resolvi verificar as câmeras para ter certeza de que a água não havia penetrado nas sacolas. Virei o conteúdo da mochila no chão. Os objetos caíram em uma poça lamacenta que salpicou em minhas roupas empapadas. Exceto pela comida ensopada, tudo o mais estava bem protegido. Graças à previdência do Sr. Kadam, as câmeras pareciam intactas.
— Bem, não temos nada para comer. Mas, fora isso, estamos bem.
Relutante, tornei a me levantar. Desconfortável e encharcada, resmunguei por pelo menos uns 10 minutos. Minhas botas faziam chape-chape e as roupas molhadas me irritavam.
— O lado bom é que lavamos os restos dos besouros e o óleo — murmurei.
Quando a luz do tubo morreu, tirei uma lanterna da mochila e a sacudi.
Ouvi o barulho de água dentro dela, mas mesmo assim ela funcionou. Fizemos algumas curvas para a esquerda, em seguida uma para a direita e chegamos a um comprido corredor, mais comprido do que qualquer outro por que já tínhamos passado. Ren e eu começamos a atravessá-lo. Aproximadamente no meio, Ren parou, saltou à minha frente e começou a me forçar a recuar – rápido.
— Que ótimo! O que foi agora? Escorpiões? Naquele momento, um grande estrondo sacudiu o túnel. O chão arenoso sobre o qual eu estivera
instantes antes ruiu. Recuei, tropeçando, enquanto o chão continuava a se esfacelar e mergulhar em um abismo profundo. Os tremores pararam de repente e então eu engatinhei até a beirada para olhar para baixo. Segurar a lanterna sobre a borda não ajudou muito, pois ainda assim não conseguia ver a profundidade do buraco.
Frustrada, gritei para o buraco:
— Quem você pensa que eu sou? Indiana Jones? Acho melhor saber que não tem nenhum chicote nesta mochila! — Gemi e me voltei para Ren. Indicando o caminho do outro lado do abismo, eu disse: — Suponho que é nesta direção que devemos ir, certo?
Ren baixou a cabeça e espiou o abismo. Então pôs-se a andar de um lado para outro ao longo da borda, examinando as paredes e olhando para a passagem que prosseguia do outro lado. Desabei contra a parede, puxei uma garrafa de água da mochila, tomei um longo gole e fechei os olhos.
Senti uma mão quente tocar a minha.
— Precisamos encontrar uma forma de transpor o abismo.
— Fique à vontade para tentar.
Fiz um gesto dispensando-o e voltei a beber minha água.
Ele foi até a borda e espiou do outro lado, avaliando a distância. Mudando para a forma de tigre, voltou alguns passos na direção de onde viéramos, ficou de frente e disparou a toda velocidade na direção do buraco.
— Ren, não! — gritei.
Ele saltou, transpondo o buraco facilmente, e aterrissou com leveza, apoiado nas patas da frente. Então se afastou um pouco da outra borda e fez o mesmo para voltar. Aterrissou aos meus pés e assumiu a forma humana.
— Kells, tenho uma ideia.
— Só espero que você não me inclua nela. Ah, já sei. Você quer amarrar uma corda na sua cauda, saltar, amarrá-la do lado de lá e então me fazer atravessar pela corda, certo?
Ele olhou para cima, como se considerasse a ideia, e então sacudiu a cabeça.
— Não, você não tem força para fazer algo assim. Além disso, não temos corda nem nada em que amarrar uma corda.
— Certo. Então qual é o plano?
Segurando minhas mãos, ele explicou:
— O que vou propor vai ser muito mais fácil. Confia em mim?
— Confio em você. Só que... — Olhei em seus olhos azuis preocupados e suspirei. — Está bem. O que eu tenho que fazer?
— Você viu que eu pude transpor esse espaço muito bem como tigre, certo? Então, quero que fique parada bem na beira do abismo e espere por mim. Vou correr até o fim do túnel, ganhar velocidade e saltar como tigre. Ao mesmo tempo, quero que você salte e agarre meu pescoço. Vou mudar para a forma humana em pleno ar para poder segurá-la e cairemos juntos do outro lado.
Bufei com desdém e ri.
— Você está brincando?
Ele ignorou meu ceticismo.
— Vamos precisar cronometrar com precisão e você terá que saltar também, na mesma direção, porque, se não fizer isso, eu simplesmente vou atingi-la com toda a força e arremessar nós dois lá no fundo.
— Está falando sério? Quer mesmo que eu faça isso?
— Estou falando sério. Venha. Fique aqui enquanto eu pratico algumas vezes.
— Não podemos simplesmente encontrar outro corredor ou coisa parecida?
— Não tem outro. Este é o caminho certo.
Com relutância, parei perto da borda e fiquei olhando enquanto ele saltava para um lado e para outro algumas vezes. Observando o ritmo de sua corrida e do salto, comecei a compreender o que ele queria que eu fizesse.
Mas cedo demais Ren estava de volta à minha frente.
— Não posso acreditar que você me convenceu a fazer isso. Tem certeza? — perguntei.
— Sim, tenho certeza. Está pronta?
— Não! Preciso de um minuto para escrever mentalmente meu testamento.
— Kells, vai dar tudo certo.
— Claro que vai. Muito bem, deixe-me olhar o lugar em que estamos. Quero ter certeza de que posso registrar cada minuto dessa experiência em meu diário. Se bem que essa deve ser uma atitude inútil, porque com certeza vou morrer na queda.
Ren pôs a mão no meu rosto, olhou nos meus olhos e disse com firmeza:
— Kelsey, confie em mim. Eu não vou deixar você cair.
Assenti, ajustei as correias da mochila nos ombros e me dirigi com nervosismo à beira do abismo. Ren voltou à forma felina e disparou até o fim do corredor. Ele se abaixou e então lançou-se à frente em um ímpeto veloz. Um imenso animal corria em disparada, vindo na minha direção, e todos os meus instintos me diziam que corresse – corresse o mais depressa possível na direção contrária. O medo do abismo às minhas costas diminuiu diante da possibilidade de ser atropelada por um animal daquele tamanho.
Eu quase fechei os olhos de medo, mas me controlei no último segundo, corri dois passos à frente e lancei meu corpo no vazio. No mesmo instante Ren deu um salto impressionante e eu estendi os braços para envolver com eles o seu pescoço.
Comecei a me agarrar desesperadamente em seu pelo, percebendo que eu estava caindo, e então senti braços que me agarravam pela cintura. Ele me apertou de encontro ao peito musculoso e giramos no ar de modo que ele ficou debaixo de mim. Aterrissamos do outro lado do abismo com um ruído seco que me tirou o ar enquanto batíamos no chão e deslizávamos um pouco com as costas de Ren.
Sorvi profundamente o ar para dentro de meus pulmões em frangalhos. Assim que consegui voltar a respirar, examinei as costas de Ren. A camisa branca estava suja e rasgada, e sua pele, arranhada e sangrando em diversos pontos.
Peguei uma camisa molhada na mochila para limpar seus arranhões, enquanto removia pequenos pedaços de cascalho cravados na pele. Quando terminei, agarrei Ren pela cintura em um abraço forte. Ele me envolveu com os braços e me puxou para mais perto. Sussurrei de encontro ao seu peito, em voz baixa porém firme:
— Obrigada. Mas nunca... nunca... nunca mais faça isso!
Ele riu.
— Se eu causar efeitos como este, com certeza vou fazer.
— Não vai, não!
Com relutância ele me soltou e eu comecei a murmurar comigo mesma, queixando-me de tigres, homens e besouros. Ele parecia muito satisfeito consigo mesmo por sobreviver a uma experiência de quase morte. Eu praticamente podia ouvi-lo entoando para si mesmo: “Eu triunfei. Venci. Sou um homem, etc. etc.” Sorri com desdém. Homens! Não importa de que século sejam, são todos iguais.
Examinei minhas coisas para ter certeza de que tinha tudo de que precisava e então tornei a pegar a lanterna. Ren se transformou novamente em tigre e tomou a minha frente.
Atravessamos mais algumas passagens até encontrar uma porta com símbolos gravados. Não havia maçaneta nem puxador. Do lado direito, a cerca de um terço da altura, via-se a marca da palma de uma mão com desenhos semelhantes aos da minha. Olhei para a minha mão e a virei. Os símbolos eram uma imagem espelhada.
— São iguais aos desenhos de Phet!
Pousei a mão sobre a porta de pedra fria, alinhando-a com o desenho, e senti um formigamento quente. Tirei a mão e olhei para a minha palma. Os símbolos brilhavam em vermelho, mas, estranhamente, isso não doía.
Aproximei a mão da porta novamente e senti o calor aumentar outra vez. Centelhas elétricas começaram a crepitar entre a porta e a minha mão à medida que eu a aproximava. Parecia que uma tempestade de raios em miniatura estava se abatendo entre minha mão e a pedra, e então senti a pedra se mover.
A porta se abriu para dentro, como se puxada por mãos invisíveis, dando-nos passagem. Entramos em uma ampla gruta que brilhava levemente por causa do líquen fosforescente que crescia nas paredes de pedra. O centro da gruta abrigava um monólito alto e retangular com uma pequena coluna de pedra erguida diante dele. Limpei a poeira da coluna e vi um par de marcas de mãos – uma direita e uma esquerda. A impressão direita parecia a mesma da porta, mas a esquerda tinha os mesmos desenhos feitos nas costas da minha mão direita.
Experimentei colocar ambas as mãos no bloco de pedra, mas nada aconteceu. Pus as costas da mão direita sobre a marca da mão esquerda. Os símbolos começaram a emitir um brilho vermelho novamente. Virando a mão, coloquei-a, com a palma para baixo, sobre a marca da mão direita e senti mais do que um formigamento morno dessa vez. A conexão crepitava com energia e o calor jorrava da minha mão para a pedra.
Ouvi um ronco grave no topo do monólito e um ruído de algo sendo sorvido. Um líquido dourado transbordou sobre o topo da construção e começou a jorrar pelos quatro lados, reunindo-se em uma bacia na base. A solução reagia a alguma coisa na pedra, que sibilava e fumegava enquanto o líquido espumava, borbulhava e chiava, e por fim gotejava na bacia.
Depois que os silvos cessaram e o vapor clareou, arquejei, em choque, vendo que entalhes de glifos haviam aparecido nos quatro lados da pedra, onde antes não havia nada.
— Acho que é isto, Ren. A profecia de Durga! Era o que estávamos procurando!
Peguei a câmera digital e comecei a fotografar a estrutura. Depois tirei mais algumas fotos com a câmera descartável, como medida de segurança. Em seguida, peguei papel e carvão e fiz uma cópia das gravuras das mãos na pedra e na porta, colocando o papel sobre elas e cobrindo-as com o carvão. Eu precisava documentar tudo para que o Sr. Kadam pudesse decifrar o significado daquilo.
Rodeei o monólito tentando compreender alguns símbolos e então ouvi um grito de Ren. Eu o vi erguer a pata e colocá-la no chão novamente com cuidado. O ácido dourado estava vazando da bacia em pequenos riachos e avançando pelo piso de pedra, preenchendo todas as ranhuras.
Olhei para baixo e vi que meu cadarço fumegava onde encostava em uma poça dourada. Tínhamos os dois acabado de saltar para a parte arenosa do piso quando outro grande estrondo sacudiu o labirinto. Do teto alto começaram a cair pedras. Elas batiam no piso de pedra e se estilhaçavam. Ren me focinhou, me forçando a ir de encontro à parede, onde me abaixei, protegendo a cabeça. Os tremores aumentaram e, com um estampido ensurdecedor, o monólito se partiu em dois, caindo no chão e se despedaçando. O ácido dourado borbulhava através da bacia quebrada e foi se espalhando pelo chão, destruindo lentamente a pedra e tudo mais que tocava.
O ácido avançou em nossa direção até não haver mais para onde irmos. A porta estava bloqueada, encerrando-nos ali, e parecia não existir outra saída.
Ren se ergueu, farejou o ar e afastou-se um pouco. Apoiado nas patas traseiras, pôs as garras na parede e começou a arranhar furiosamente alguma coisa.
Aproximando-me dele, vi que ele tinha aberto um buraco e que havia estrelas do outro lado! Ajudei-o a cavar e a deslocar as pedras até que o buraco fosse grande o bastante para ele atravessá-lo com um salto. Depois que ele saiu, atirei a mochila pela abertura e a transpus, caindo do outro lado e rolando pelo chão.
Naquele momento, uma rocha imensa caiu com estardalhaço, fechando o buraco. Os tremores diminuíram até cessarem de todo. O silêncio desceu sobre a selva escura, onde ficamos parados, enquanto uma poeira fina e leve pairava no ar e caía suavemente sobre nós.
Se o pai era tão fiel a estas palavras quanto Ren diz que era, deve ter sido um bom rei.
Por um minuto, deixei minha imaginação criar uma versão mais velha de Ren como rei. Podia facilmente visualizá-lo liderando outras pessoas. Ele tinha algo que me fazia querer confiar nele e segui-lo. Sorri ironicamente. As mulheres o seguiriam até em um precipício.
O Sr. Kadam servira ao seu príncipe por mais de 300 anos. A ideia de que Ren podia inspirar uma vida de lealdade era extraordinária. Deixei de lado minhas especulações e olhei novamente com admiração para o Selo de vários séculos.
Abri a bolsa que o Sr. Kadam havia deixado e descobri que ela continha câmeras, tanto digital quanto descartável, fósforos, algumas ferramentas para cavar, lanternas, um canivete, aqueles tubinhos que emitem luz quando são agitados, papel e carvão para desenho, comida, água, mapas e alguns outros itens. Vários deles haviam sido colocados em bolsas plásticas à prova d agua. Testei o peso da bolsa e descobri que era bem razoável.
Abri o closet, corri os dedos outra vez pelo meu lindo vestido e suspirei. Vesti jeans e camiseta, calcei as novas botas de caminhada e peguei os tênis.
No primeiro andar, encontrei o Sr. Kadam cortando mangas para o café da manhã.
— Bom dia, Srta. Kelsey — disse ele, e apontou para meu pescoço. — Vejo que a senhorita encontrou o Selo.
— Encontrei, sim. É muito bonito, mas um pouquinho pesado. — Coloquei algumas fatias de manga em meu prato e despejei um pouco de chocolate quente caseiro em uma caneca. — O senhor cuidou dele durante todos esses anos?
— Sim. Ele é muito precioso para mim. O Selo na verdade foi feito na China, não na Índia. Foi um presente dado ao avô de Ren. Selos antigos assim são bem raros. É feito de pedra Shoushan, que, contrariando a crença popular, não é um tipo de jade. Os chineses acreditavam que Shoushans eram ovos de fênix de cores vivas encontrados em ninhos no alto das montanhas. Homens que arriscavam a vida para localizá-los e capturá-los recebiam honras, glória e riqueza.
— Interessante — comentei, instigando-o a continuar seu relato.
— Somente os homens mais ricos tinham objetos entalhados nesse tipo de pedra. Receber um de presente foi uma grande honra para o avô de Ren. Este é um tesouro de família de valor inestimável. A boa notícia para você é: dizem que ter ou usar alguma coisa feita desse tipo de pedra dá sorte. Talvez a ajude na jornada mais do que você imagina.
— Parece que a família de Ren era muito especial.
— De fato era, Srta. Kelsey.
Tínhamos acabado de nos sentar para tomar iogurte com manga quando Ren entrou, sorrateiro, na cozinha e pôs a cabeça no meu colo.
Cocei suas orelhas.
— Que bom que você se juntou a nós. Está ansioso para pôr o pé na estrada? Deve estar empolgado por se ver tão perto de quebrar a maldição.
Ele continuou a me olhar com intensidade, como se estivesse impaciente para sair, mas eu não queria correr. Acalmei-o com pedaços de manga. Momentaneamente satisfeito, ele se sentou e saboreou o petisco, lambendo o sumo de meus dedos.
Eu ri.
— Pare! Isso faz cócegas! — Ele me ignorou, passou para o meu braço e me lambeu quase até a manga da camiseta. — Ei, eca, Ren! Está bem. Está bem. Vamos.
Lavei meu braço, olhei a vista da propriedade uma última vez e segui para a garagem. O Sr. Kadam já estava do lado de fora com Ren. Ele pegou a bolsa da minha mão, colocou-a no banco do carona e então segurou a porta enquanto eu subia no Jeep.
— Tome cuidado, Srta. Kelsey — advertiu o Sr. Kadam. — Ren vai protegê-la, porém são muitos os perigos no caminho. Contra alguns estamos prevenidos, mas estou certo de que vocês irão enfrentar muitos dos quais não tenho ciência. Tenha cautela.
— Eu terei. Tomara que a gente volte logo.
Fechei o vidro da janela e saí da garagem dando ré. O GPS começou a soar de novo, dizendo-me para onde ir. Mais uma vez, senti uma profunda gratidão pelo Sr. Kadam. Ren e eu estaríamos totalmente perdidos sem ele.
A viagem não teve nada de memorável. O trânsito estava muito tranquilo na primeira hora. Começou a ganhar intensidade à medida que íamos nos aproximando de Mumbai, mas a essa altura eu havia quase me acostumado a dirigir do outro lado da rua. Seguimos por cerca de quatro horas antes de eu parar no fim de uma estrada de terra que delimita o parque.
— É aqui que devemos entrar. Segundo o mapa, vamos levar duas horas e meia andando até a caverna de Kanheri. — Consultei o relógio e continuei: — Isso nos deixa com um intervalo de cerca de duas horas antes que anoiteça e os turistas vão embora.
Ren saltou do carro e me seguiu para o parque, para um local na sombra. Deitou-se na grama e eu me sentei perto dele. A princípio, usei seu corpo como apoio para as costas e então, gradualmente, fui relaxando encostada nele, usando suas costas como almofada.
Olhando para o alto das árvores, comecei a falar. Contei a Ren como fora crescer com meus pais, recordei as visitas à minha avó e as viagens de férias da família.
— Mamãe era enfermeira em uma instituição para idosos, mas depois resolveu ficar em casa e cuidar de mim — expliquei, voltando ao passado e às doces lembranças. — Ela fazia o melhor cookie com gotas de chocolate e creme de amendoim do mundo. Achava que demonstrar amor significava fazer cookies em casa e provavelmente foi esse o motivo de eu ter sido uma criança gorducha.
Ren ouvia com atenção.
— Papai era o típico pai que faz churrasco no quintal. Era professor de matemática e acho que passou parte disso para mim, pois também gosto de matemática. Todos nós adorávamos ler e tínhamos uma pequena biblioteca em casa. Os livros do Dr. Seuss eram os meus preferidos. Mesmo agora eu quase posso sentir a presença dos meus pais quando pego um livro.
As lembranças me emocionavam, mas eu não queria parar de falar.
— Quando viajávamos, eles gostavam de se hospedar em pousadas simples, e eu ficava com um quarto só para mim. Viajamos praticamente por todo o estado e conhecemos fazendas de maçãs e minas antigas, cidades inspiradas na Bavária que serviam panquecas alemãs no café da manhã, o mar e as montanhas. Acho que você se apaixonaria facilmente pelo Oregon. Não viajei tanto quanto você, mas não posso imaginar um lugar mais bonito do que o estado onde nasci.
Mais tarde, falei sobre a escola e meu sonho de ir para a universidade, embora eu não pudesse pagar mais do que uma faculdade comunitária. Falei até do acidente dos meus pais, de como me senti sozinha quando aconteceu e de como era viver com uma família adotiva.
A cauda de Ren batia de um lado para outro, por isso eu sabia que ele estava acordado e ouvindo, o que me surpreendeu, pois achei que cairia no sono, entediado com a minha tagarelice. Por fim, minha voz foi baixando, eu mesma ficando com sono, e acabei cochilando no calor até sentir Ren se mover e ficar de pé.
Então me espreguicei.
— Já é hora de ir, não é? Muito bem. Você vai na frente.
Iniciamos a caminhada pelo parque. A vegetação ali era muito mais aberta do que no Santuário da Vida Selvagem Yawal. As árvores eram mais espaçadas. Lindas flores púrpuras cobriam as colinas. Passamos por tecas e bambus, mas havia outros tipos que eu não conseguia identificar. Vários animais atravessavam em disparada à nossa frente. Eu vi coelhos, cervos e porcos-espinhos. Olhando para os galhos mais altos, podia encontrar centenas de pássaros, numa grande variedade de cores.
Enquanto andávamos sob um grupo de árvores particularmente denso, ouvi grunhidos estranhos e assustados e avistei macacos Rhesus se balançando nas alturas. Eram inofensivos, mas, à medida que nos dirigíamos mais para o centro do parque, vi outras criaturas mais perigosas. Eu me desviei de uma píton gigante que, pendurada em uma árvore, nos observava com olhos negros e imóveis. Lagartos-monitores enormes de língua bifurcada e corpo comprido cruzavam correndo o nosso caminho, sibilando. Besouros grandes e gordos zumbiam preguiçosamente à nossa volta, trombavam, atarantados, em objetos em pleno voo e então prosseguiam sua jornada.
Era tudo bonito, mas ao mesmo tempo assustador, e era bom ter um tigre por perto. De vez em quando, Ren saía do caminho e circulava um trecho, o que me levava a pensar que ele estava evitando certos lugares ou talvez, estremeci, certas coisas.
Depois de cerca de duas horas de caminhada, chegamos perto da caverna Kanheri, nos limites da selva. A floresta havia se tornado mais esparsa, abrindo-se para uma colina sem árvores. Degraus de pedra levavam colina acima, até a entrada, mas ainda estávamos muito distantes para ter mais do que um simples vislumbre da caverna. Comecei a me dirigir aos degraus, mas Ren saltou à minha frente e me cutucou com o focinho, indicando que eu voltasse para as árvores.
— Quer esperar mais um pouco? Certo. Vamos esperar.
Sentados sob a proteção de uns arbustos, esperamos por uma hora. Ligeiramente impaciente, vi turistas saírem da caverna, descerem os degraus devagar e seguirem para o estacionamento. Pude ouvi-los tagarelando enquanto se afastavam em seus carros.
— Que pena que não pudemos vir de carro — observei, com inveja. — Teríamos poupado um bocado de esforço. Mas acho que as pessoas não entenderiam por que um tigre estava me seguindo por aí. Sem contar que o guarda florestal ficaria de olho na gente.
Finalmente o sol se pôs e as pessoas se foram. Ren deixou cautelosamente a proteção das árvores e farejou o ar. Satisfeito, começou a se dirigir aos degraus de pedra entalhados na colina pedregosa. A subida era longa e eu estava sem fôlego quando chegamos lá em cima.
Assim que entramos na caverna, deparamos com um bunker de pedra aberto, com cômodos que me lembravam os favos de uma colmeia, todos idênticos. Um bloco de pedra do tamanho de uma cama pequena encontrava-se posicionado do lado esquerdo de cada cômodo e prateleiras escavadas localizavam-se nas paredes dos fundos. Uma placa informava que a caverna era parte de um povoamento budista que datava do século III.
Não é estranho que estejamos procurando uma profecia hindu em um povoamento budista?, pensei ao seguirmos em frente. Mas, afinal, tudo nesta aventura é mesmo um pouco estranho.
Adentrando ainda mais a caverna, notei longos fossos de pedra conectados por arcos que corriam de um poço de pedra central e avançavam – provavelmente mais para o alto da montanha. Uma placa dizia que os fossos já haviam sido usados como aqueduto, para levar água até aquela área.
Chegando à câmara principal, corri as mãos sobre os sulcos profundos da parede elaboradamente entalhada. Sinais da antiga escrita hindu e hieróglifos haviam sido gravados nas paredes.
Os vestígios de um teto, ainda mantido em alguns pontos por pilares de pedra, lançavam sombras no local. Estátuas haviam sido entalhadas nas colunas de pedra e, enquanto andávamos, eu mantinha os olhos nelas para me certificar de que não deixariam os restos do teto desabar sobre nós.
Ren prosseguiu até os fundos da câmara principal, na direção da boca negra e escancarada da caverna que avançava ainda mais fundo na colina. Eu o segui e transpus a abertura, alcançando um piso arenoso em um amplo espaço circular. Fazendo uma pausa, deixei que meus olhos se ajustassem por um minuto.
A caverna circular tinha muitas aberturas. A luz que entrava, suficiente apenas para revelar a silhueta da abertura, não conseguia penetrar nos corredores adiante e ia enfraquecendo rapidamente à medida que o sol se punha.
Peguei uma lanterna e perguntei:
— O que fazemos agora?
Ren se dirigiu para o primeiro vão sombrio e desapareceu na escuridão. Seguindo-o, abaixei-me para entrar na pequena câmara repleta de prateleiras de pedra. Perguntei-me se algum dia teria sido usada como biblioteca. Depois de percorrê-la, voltei à entrada, esperando ver uma placa gigante que dissesse “Profecia de Durga aqui!”, e de repente senti uma mão em meu ombro. Dei um pulo com o toque de Ren.
— Não faça isso! Não pode me avisar antes?
— Desculpe, Kells. Precisamos procurar em cada uma das cavernas um símbolo que pareça o Selo. Você procura em cima e eu, embaixo.
Ele apertou brevemente meu ombro e se metamorfoseou em tigre.
Estremeci. Acho que nunca vou me acostumar com isso.
Não vimos nenhum entalhe na câmara, então passamos para a seguinte e depois para a outra. No quarto vão, procuramos com mais cuidado, pois a caverna era cheia de glifos. Ficamos ali por pelo menos uma hora. Tampouco tivemos sorte na quinta caverna.
A sexta estava vazia. Nem sequer uma prateleira de pedra decorava as paredes, mas foi na sétima abertura que encontramos algo. O vão levava a uma câmara muito menor que as outras. Era comprida e estreita e tinha algumas prateleiras à semelhança das outras cavernas. Ren encontrou o entalhe debaixo de uma das prateleiras. Eu provavelmente não o teria visto se estivesse procurando sozinha.
Ele grunhiu suavemente para mim e enfiou o nariz sob a laje de pedra.
— O que foi? — perguntei e me abaixei.
De fato, debaixo da prateleira na parede dos fundos da câmara havia um entalhe que reproduzia perfeitamente o Selo.
— Bem, acho que é ele. Cruze os dedos, ou melhor, as garras.
Tirei o Selo do meu pescoço e o coloquei sobre o entalhe, ajeitando-o até sentir que se encaixava com um clique. Esperei, mas nada aconteceu.
Tentei girar o Selo e dessa vez ouvi um chiado mecânico por trás da parede. Depois de uma volta completa, senti resistência e ouvi um silvo abafado. A poeira subiu pelas bordas da parede, revelando que na verdade se tratava de uma porta. Um ronco grave e abafado sacudiu a porta à medida que ela lentamente deslizava para trás.
Tirei o Selo do encaixe, tornei a colocá-lo em meu pescoço e dirigi o fraco feixe de luz para além da porta. Vi apenas mais paredes. Ren me cutucou com o focinho, fazendo-me abrir espaço, e entrou primeiro. Eu me mantinha o mais perto possível dele e umas duas vezes quase tropecei em suas patas.
Voltando o foco da lanterna para a parede, encontrei uma tocha presa a um suporte de metal. Peguei alguns fósforos e fiquei surpresa por conseguir acendê-la quase imediatamente. A chama iluminou o corredor muito melhor do que minha modesta lanterna.
Estávamos no topo de uma escada sinuosa.
Espiei com cautela por sobre a borda, vendo um abismo escuro. Como o único caminho era a escada, peguei a tocha e iniciei a descida. Um clique soou às nossas costas e, com um ligeiro silvo, a porta se fechou, trancando-nos ali.
— Ótimo — murmurei. — Vamos nos preocupar com isso só mais tarde.
Ren simplesmente me olhou e esfregou a cabeça na minha perna. Massageei o pelo de sua nuca e continuamos a descer os degraus.
Ele se colocou no lado externo da escada, o que me deixava colada à parede enquanto descíamos. Eu não tinha fobia de altura, mas uma passagem secreta, degraus estreitos, um abismo escuro e nenhum corrimão com certeza estavam me apavorando. Fiquei grata por ele ficar com o lado mais perigoso.
Descíamos devagar e meu braço começou a doer por causa da tocha. Mudei-a para a outra mão, tomando cuidado para não pingar azeite quente em Ren. Quando finalmente alcançamos a base poeirenta da escada, outra passagem escura se abriu diante de nós e deparamos com uma bifurcação. Soltei um gemido.
— Que caminho seguimos agora?
Ren entrou em um dos corredores e farejou o ar. Então passou ao outro e ergueu a cabeça para farejar novamente. Voltando ao primeiro, ele prosseguiu. Eu também farejei o ar, só para ver se conseguia perceber o mesmo que ele, mas a única coisa que senti foi um odor acre e insalubre, parecido com enxofre. O cheiro amargo impregnava a caverna e parecia se intensificar a cada curva que fazíamos.
Avançamos quase no escuro, serpenteando pelo labirinto subterrâneo. A tocha lançava uma luz bruxuleante nas paredes, criando sombras assustadoras que dançavam em círculos sinistros. Enquanto prosseguíamos pelo labirinto lúgubre, encontramos várias áreas abertas onde os caminhos se ramificavam. Ren tinha que parar e cheirar cada passagem antes de escolher a que ele achava que nos levaria na direção certa.
Pouco depois de passar por uma dessas áreas abertas, um som aterrorizante sacudiu a passagem. Um martelar metálico soou bem alto e um portão de ferro com pontas afiadas cravou-se no chão logo atrás de mim. Girei rapidamente e gritei de medo. Nós não só estávamos em um labirinto antigo e escuro como estávamos em um labirinto antigo e escuro cheio de armadilhas.
Ren veio para o meu lado e se manteve bem perto, o suficiente para que eu mantivesse a mão em seu pescoço. Cravei os dedos em seu pelo e segurei com força para me tranquilizar. Três curvas depois, ouvi um zumbido abafado vindo de uma das passagens à frente. O zumbido aumentava de volume à medida que nos aproximávamos.
Dobrando uma esquina, Ren parou e olhou diretamente à frente. Seu pelo se eriçou e espetou os meus dedos. Ergui a tocha para ver por que ele havia parado e agarrei com força seu pelo ao mesmo tempo que arregalava os olhos e começava a tremer.
O corredor adiante estava se mexendo. Besouros negros gigantes, do tamanho de bolas de beisebol, subiam preguiçosamente uns sobre os outros, obstruindo a passagem à nossa frente. As estranhas aberrações pareciam limitar seus movimentos àquele corredor.
— É... Ren? Tem certeza de que precisamos ir naquela direção? Esta outra passagem parece um pouco melhor.
Ele deu um passo, aproximando-se da esquina.
Relutante, eu o segui. Os besouros tinham exosqueletos pretos e brilhantes, seis pernas peludas, antenas tremulantes e duas mandíbulas pontudas na frente que estalavam, abrindo-se e fechando-se como tesouras afiadas. Alguns deles abriam asas negras espessas e zumbiam ruidosamente ao voar para a parede oposta. As pernas espinhentas de outros besouros prendiam-se ao teto.
Olhei para Ren e engoli em seco quando ele avançou, determinado a atravessar a passagem.
Ele se virou para trás e me olhou.
— Está bem, Ren. Eu vou. Mas vou correr o caminho todo. Tente me acompanhar.
Dei alguns passos para trás, segurei com mais força a tocha e disparei à frente. Estreitando os olhos, corri com os lábios apertados, um grito no fundo da garganta o tempo todo. Atravessei a passagem o mais rápido possível e quase perdi o equilíbrio algumas vezes, quando minhas botas patinavam sobre vários besouros ao mesmo tempo, esmagando-os. Uma imagem horrível cruzou minha mente: cair de cara naquele monte de insetos. Decidi tomar mais cuidado com os pontos onde pisava.
Tinha a sensação de estar correndo em um rolo gigante de plástico bolha e cada passo meu estourava várias bolhas enormes. Os besouros explodiam como sachês de ketchup e espirravam uma gosma verde em todas as direções. Isso, naturalmente, perturbou os outros besouros.
Vários levantaram voo e começaram a enxamear em torno do meu corpo, aterrissando na minha calça, na minha blusa e no meu cabelo. Eu conseguia desviá-los do rosto com a mão livre, que várias vezes foi espetada por suas mandíbulas.
Chegando finalmente ao outro lado, comecei a me sacudir convulsivamente para me livrar de quaisquer possíveis caronas. Tive que arrancar com a mão alguns que não queriam se soltar, inclusive um que subia pelo meu rabo de cavalo.
Então comecei a limpar a sola das botas na parede enquanto tentava ver Ren.
Ele corria em disparada pela passagem, que continuava a zumbir, e, com um grande salto, aterrissou ao meu lado, sacudindo-se violentamente. Vários besouros ainda se agarravam ao seu pelo, de modo que tive que empurrá-los com o cabo da tocha. Um deles havia beliscado sua orelha com força suficiente para fazê-la sangrar. Para minha sorte, eu conseguira atravessar sem que nenhum me beliscasse a ponto de rasgar a pele.
— Acho que usar roupas ajuda, Ren. Eles acabam beliscando as roupas em vez da pele. Pobre tigre. Você tem besouros esmagados em todas as patas. Eca! Pelo menos eu tenho a vantagem das botas.
Ele sacudiu as patas, uma de cada vez, e eu o ajudei a tirar corpos de besouros dos espaços entre seus dedos. Estremecendo uma última vez, acelerei o passo para pôr o máximo de distância possível entre os besouros e nós.
Cerca de 10 curvas depois, pisei em uma pedra que afundou no chão. Paralisada, esperei que a próxima armadilha fosse acionada. As paredes começaram a se sacudir e pequenos painéis de metal se projetaram delas, fazendo com que lanças de metal, pontudas e afiadas, surgissem de ambos os lados. Deixei escapar um gemido.
Além das lanças, a armadilha também consistia em um óleo negro e viscoso que jorrava de canos de pedra, cobrindo o chão.
Ren assumiu a forma humana.
— Tem veneno na ponta das lanças, Kelsey. Posso sentir o cheiro. Fique no meio. Tem espaço suficiente para passarmos, mas não se deixe nem mesmo arranhar por estas pontas.
Dei outra olhada nas lanças compridas e pontudas e estremeci.
— Mas e se eu escorregar?
— Segure com força o meu pelo. Vou usar minhas garras como âncoras enquanto avançamos bem devagar. Não corra agora.
Ren voltou à forma de tigre. Ajeitei a mochila e me agarrei com força ao pelo de sua nuca. Ele deu um passo cauteloso na poça de óleo, testando-a primeiro com uma das patas. Ela deslizou um pouco e eu vi as garras emergirem e mergulharem no óleo e depois no piso de terra.
Ele então as cravou com força no chão escorregadio. Depois de firmar a perna, ele deu outro passo e firmou as garras da outra pata. Depois que essa pata estava apoiada com firmeza, ele teve que puxar com força para erguer a outra pata.
Era um processo meticuloso e tedioso. Cada lança letal estava posicionada a intervalos aleatórios, de modo que eu não podia nem me acostumar a um ritmo. Era preciso concentrar toda a atenção nelas. Havia uma na altura da minha panturrilha, outras perto do pescoço, da cabeça, da barriga. Comecei a contar e parei quando cheguei a 50. Todo o meu corpo tremia por causa do esforço de contrair os músculos e me mover, rígida, por tanto tempo. Um passo em falso e eu estaria morta.
Felizmente Ren estava avançando bem devagar, pois mal havia espaço para andarmos lado a lado. Tínhamos apenas uns 2 centímetros de espaço livre de cada lado. Eu dava cada passo com todo o cuidado. O suor escorria pelo meu rosto. Mais ou menos na metade do caminho, soltei um grito. Devo ter pisado em um local particularmente escorregadio, pois minha bota
deslizou. Meu joelho se dobrou e eu cambaleei.
Havia uma ponta de ferro na altura do meu peito, mas no último segundo virei o corpo e ela se cravou na mochila, e não no meu braço. Ren ficou paralisado, esperando pacientemente que eu me endireitasse.
Arquejei e me ergui, um membro trêmulo de cada vez. Foi um milagre eu não acabar empalada. Quando Ren emitiu um gemido, eu lhe dei tapinhas nas costas.
— Estou bem — tranquilizei-o.
Tive sorte, muita sorte. Prosseguimos ainda mais devagar e por fim emergimos na outra extremidade, trêmulos porém salvos. Deixei-me cair no chão de terra e gemi, esfregando meu pescoço rígido.
— Depois das lanças, os besouros não parecem assim tão ruins. Acho que eu prefiro passar por eles de novo a enfrentar essas aí.
Ren lambeu meu braço e fiz um carinho em sua cabeça.
Após um rápido descanso, prosseguimos.
Atravessamos várias outras passagens sem que nada acontecesse. Eu estava começando a baixar a guarda quando ouvi um barulho e uma porta afundou atrás de nós. Outra começou a descer à frente, e corremos para atravessá-la, mas não conseguimos. Bem, Ren poderia ter atravessado, mas ele não iria sem mim.
Um ruído gorgolejante começou a soar em canos acima de nossas cabeças e um painel se abriu no teto. Um momento depois, fomos lançados ao chão por uma torrente de água que caiu sobre nós. Ela apagou nossa tocha e rapidamente começou a encher a câmara. A água já estava nos meus joelhos quando consegui me pôr de pé novamente. Abri um zíper da mochila, tateando cegamente. Encontrando um tubo comprido, dei-lhe uma batida, sacudi-o e o líquido ali dentro começou a brilhar. A luz amarela tingiu o pelo branco de Ren.
— O que vamos fazer? Você sabe nadar? Vai cobrir sua cabeça primeiro!
Ren se transformou em homem.
— Os tigres sabem nadar. Posso prender a respiração mais tempo como tigre do que como homem.
A água agora estava na nossa cintura e ele rapidamente me puxou além do cano de onde a água jorrava até a porta à nossa frente. Quando a alcançamos, eu já estava flutuando. Ren mergulhou, procurando uma saída.
Quando sua cabeça reemergiu, ele gritou:
— Tem outra marca do Selo na porta. Tente inserir o Selo e girá-lo, como você fez antes!
Assenti e respirei fundo. Debaixo da água, tateei ao longo da porta, procurando a marca. Quando finalmente a encontrei, estava ficando sem fôlego. Lutando para chegar à superfície, bati com força as pernas, sobrecarregada com a mochila pesada e o Selo que pendia do meu pescoço. Ren estendeu os braços debaixo da água, agarrou a mochila e me puxou para a superfície.
Agora estávamos flutuando perto do teto. Iríamos nos afogar a qualquer instante. Respirei fundo algumas vezes.
— Você consegue, Kells. Tente de novo.
Enchi os pulmões mais uma vez e arranquei o Selo do pescoço. Ren soltou a mochila e eu mergulhei novamente, tomando impulso até a base da porta. Pressionei o Selo no sulco e o girei para um lado e para outro, mas ele não se moveu.
Ren havia voltado à forma felina e agora descia nadando até mim. Suas patas rasgavam a água, e o movimento jogava o pelo de seu rosto para trás, dando-lhe uma aparência assustadora, como um monstro marinho branco listrado. A carranca de dentes pontudos também não ajudava. Eu estava ficando sem ar outra vez, mas sabia que a câmara fora inundada e que não havia mais opções.
Entrei em pânico e comecei a pensar o pior. Eu morreria aqui. Nunca seria encontrada. Não teria um enterro. Qual seria a sensação de me afogar? Seria rápido. Só leva um minuto ou dois. Meu cadáver ficaria inchado, flutuando para sempre perto do corpo de tigre de Ren. Aqueles besouros horríveis entrariam aqui e comeriam o meu corpo? De alguma forma, isso parecia pior do que a morte em si. Ren podia prender o fôlego por mais tempo. Ele me veria morrer. Imaginei como se sentiria com isso. Lamentaria? Sentiria culpa? Será que ele se bateria contra a porta?
Lutei contra a vontade desesperada de nadar para a superfície. Não havia mais superfície. Não havia mais ar. Frustrada e apavorada, esmurrei o Selo e senti um leve movimento. Bati novamente, com mais força, e ouvi um barulho. A porta finalmente começou a se levantar e o Selo caiu.
Estendi o braço em desespero, mal conseguindo agarrar a fita entre dois dedos enquanto a água jorrava pela porta, levando-nos com ela. A torrente nos jogou no corredor seguinte e então escorreu por buracos de drenagem, deixando o chão encharcado e lamacento.
Arquejei e tossi, inspirando o ar em grandes golfadas. Olhei para Ren, ri e então tossi novamente. Mesmo engasgando, eu ainda ria.
— Ren — riso-tosse — você está parecendo um — tosse-tosse-riso — gato afogado!
Ele não deve ter achado graça. Ren bufou, veio até mim e sacudiu-se como um cachorro, espalhando água e lama por toda parte. Seu pelo projetava-se como agulhas molhadas.
— Ei! Muito obrigada! Ah, não tem problema. Ainda assim é engraçado.
Tentei espremer a água de minhas roupas, tornei a colocar o Selo no pescoço e resolvi verificar as câmeras para ter certeza de que a água não havia penetrado nas sacolas. Virei o conteúdo da mochila no chão. Os objetos caíram em uma poça lamacenta que salpicou em minhas roupas empapadas. Exceto pela comida ensopada, tudo o mais estava bem protegido. Graças à previdência do Sr. Kadam, as câmeras pareciam intactas.
— Bem, não temos nada para comer. Mas, fora isso, estamos bem.
Relutante, tornei a me levantar. Desconfortável e encharcada, resmunguei por pelo menos uns 10 minutos. Minhas botas faziam chape-chape e as roupas molhadas me irritavam.
— O lado bom é que lavamos os restos dos besouros e o óleo — murmurei.
Quando a luz do tubo morreu, tirei uma lanterna da mochila e a sacudi.
Ouvi o barulho de água dentro dela, mas mesmo assim ela funcionou. Fizemos algumas curvas para a esquerda, em seguida uma para a direita e chegamos a um comprido corredor, mais comprido do que qualquer outro por que já tínhamos passado. Ren e eu começamos a atravessá-lo. Aproximadamente no meio, Ren parou, saltou à minha frente e começou a me forçar a recuar – rápido.
— Que ótimo! O que foi agora? Escorpiões? Naquele momento, um grande estrondo sacudiu o túnel. O chão arenoso sobre o qual eu estivera
instantes antes ruiu. Recuei, tropeçando, enquanto o chão continuava a se esfacelar e mergulhar em um abismo profundo. Os tremores pararam de repente e então eu engatinhei até a beirada para olhar para baixo. Segurar a lanterna sobre a borda não ajudou muito, pois ainda assim não conseguia ver a profundidade do buraco.
Frustrada, gritei para o buraco:
— Quem você pensa que eu sou? Indiana Jones? Acho melhor saber que não tem nenhum chicote nesta mochila! — Gemi e me voltei para Ren. Indicando o caminho do outro lado do abismo, eu disse: — Suponho que é nesta direção que devemos ir, certo?
Ren baixou a cabeça e espiou o abismo. Então pôs-se a andar de um lado para outro ao longo da borda, examinando as paredes e olhando para a passagem que prosseguia do outro lado. Desabei contra a parede, puxei uma garrafa de água da mochila, tomei um longo gole e fechei os olhos.
Senti uma mão quente tocar a minha.
— Precisamos encontrar uma forma de transpor o abismo.
— Fique à vontade para tentar.
Fiz um gesto dispensando-o e voltei a beber minha água.
Ele foi até a borda e espiou do outro lado, avaliando a distância. Mudando para a forma de tigre, voltou alguns passos na direção de onde viéramos, ficou de frente e disparou a toda velocidade na direção do buraco.
— Ren, não! — gritei.
Ele saltou, transpondo o buraco facilmente, e aterrissou com leveza, apoiado nas patas da frente. Então se afastou um pouco da outra borda e fez o mesmo para voltar. Aterrissou aos meus pés e assumiu a forma humana.
— Kells, tenho uma ideia.
— Só espero que você não me inclua nela. Ah, já sei. Você quer amarrar uma corda na sua cauda, saltar, amarrá-la do lado de lá e então me fazer atravessar pela corda, certo?
Ele olhou para cima, como se considerasse a ideia, e então sacudiu a cabeça.
— Não, você não tem força para fazer algo assim. Além disso, não temos corda nem nada em que amarrar uma corda.
— Certo. Então qual é o plano?
Segurando minhas mãos, ele explicou:
— O que vou propor vai ser muito mais fácil. Confia em mim?
— Confio em você. Só que... — Olhei em seus olhos azuis preocupados e suspirei. — Está bem. O que eu tenho que fazer?
— Você viu que eu pude transpor esse espaço muito bem como tigre, certo? Então, quero que fique parada bem na beira do abismo e espere por mim. Vou correr até o fim do túnel, ganhar velocidade e saltar como tigre. Ao mesmo tempo, quero que você salte e agarre meu pescoço. Vou mudar para a forma humana em pleno ar para poder segurá-la e cairemos juntos do outro lado.
Bufei com desdém e ri.
— Você está brincando?
Ele ignorou meu ceticismo.
— Vamos precisar cronometrar com precisão e você terá que saltar também, na mesma direção, porque, se não fizer isso, eu simplesmente vou atingi-la com toda a força e arremessar nós dois lá no fundo.
— Está falando sério? Quer mesmo que eu faça isso?
— Estou falando sério. Venha. Fique aqui enquanto eu pratico algumas vezes.
— Não podemos simplesmente encontrar outro corredor ou coisa parecida?
— Não tem outro. Este é o caminho certo.
Com relutância, parei perto da borda e fiquei olhando enquanto ele saltava para um lado e para outro algumas vezes. Observando o ritmo de sua corrida e do salto, comecei a compreender o que ele queria que eu fizesse.
Mas cedo demais Ren estava de volta à minha frente.
— Não posso acreditar que você me convenceu a fazer isso. Tem certeza? — perguntei.
— Sim, tenho certeza. Está pronta?
— Não! Preciso de um minuto para escrever mentalmente meu testamento.
— Kells, vai dar tudo certo.
— Claro que vai. Muito bem, deixe-me olhar o lugar em que estamos. Quero ter certeza de que posso registrar cada minuto dessa experiência em meu diário. Se bem que essa deve ser uma atitude inútil, porque com certeza vou morrer na queda.
Ren pôs a mão no meu rosto, olhou nos meus olhos e disse com firmeza:
— Kelsey, confie em mim. Eu não vou deixar você cair.
Assenti, ajustei as correias da mochila nos ombros e me dirigi com nervosismo à beira do abismo. Ren voltou à forma felina e disparou até o fim do corredor. Ele se abaixou e então lançou-se à frente em um ímpeto veloz. Um imenso animal corria em disparada, vindo na minha direção, e todos os meus instintos me diziam que corresse – corresse o mais depressa possível na direção contrária. O medo do abismo às minhas costas diminuiu diante da possibilidade de ser atropelada por um animal daquele tamanho.
Eu quase fechei os olhos de medo, mas me controlei no último segundo, corri dois passos à frente e lancei meu corpo no vazio. No mesmo instante Ren deu um salto impressionante e eu estendi os braços para envolver com eles o seu pescoço.
Comecei a me agarrar desesperadamente em seu pelo, percebendo que eu estava caindo, e então senti braços que me agarravam pela cintura. Ele me apertou de encontro ao peito musculoso e giramos no ar de modo que ele ficou debaixo de mim. Aterrissamos do outro lado do abismo com um ruído seco que me tirou o ar enquanto batíamos no chão e deslizávamos um pouco com as costas de Ren.
Sorvi profundamente o ar para dentro de meus pulmões em frangalhos. Assim que consegui voltar a respirar, examinei as costas de Ren. A camisa branca estava suja e rasgada, e sua pele, arranhada e sangrando em diversos pontos.
Peguei uma camisa molhada na mochila para limpar seus arranhões, enquanto removia pequenos pedaços de cascalho cravados na pele. Quando terminei, agarrei Ren pela cintura em um abraço forte. Ele me envolveu com os braços e me puxou para mais perto. Sussurrei de encontro ao seu peito, em voz baixa porém firme:
— Obrigada. Mas nunca... nunca... nunca mais faça isso!
Ele riu.
— Se eu causar efeitos como este, com certeza vou fazer.
— Não vai, não!
Com relutância ele me soltou e eu comecei a murmurar comigo mesma, queixando-me de tigres, homens e besouros. Ele parecia muito satisfeito consigo mesmo por sobreviver a uma experiência de quase morte. Eu praticamente podia ouvi-lo entoando para si mesmo: “Eu triunfei. Venci. Sou um homem, etc. etc.” Sorri com desdém. Homens! Não importa de que século sejam, são todos iguais.
Examinei minhas coisas para ter certeza de que tinha tudo de que precisava e então tornei a pegar a lanterna. Ren se transformou novamente em tigre e tomou a minha frente.
Atravessamos mais algumas passagens até encontrar uma porta com símbolos gravados. Não havia maçaneta nem puxador. Do lado direito, a cerca de um terço da altura, via-se a marca da palma de uma mão com desenhos semelhantes aos da minha. Olhei para a minha mão e a virei. Os símbolos eram uma imagem espelhada.
— São iguais aos desenhos de Phet!
Pousei a mão sobre a porta de pedra fria, alinhando-a com o desenho, e senti um formigamento quente. Tirei a mão e olhei para a minha palma. Os símbolos brilhavam em vermelho, mas, estranhamente, isso não doía.
Aproximei a mão da porta novamente e senti o calor aumentar outra vez. Centelhas elétricas começaram a crepitar entre a porta e a minha mão à medida que eu a aproximava. Parecia que uma tempestade de raios em miniatura estava se abatendo entre minha mão e a pedra, e então senti a pedra se mover.
A porta se abriu para dentro, como se puxada por mãos invisíveis, dando-nos passagem. Entramos em uma ampla gruta que brilhava levemente por causa do líquen fosforescente que crescia nas paredes de pedra. O centro da gruta abrigava um monólito alto e retangular com uma pequena coluna de pedra erguida diante dele. Limpei a poeira da coluna e vi um par de marcas de mãos – uma direita e uma esquerda. A impressão direita parecia a mesma da porta, mas a esquerda tinha os mesmos desenhos feitos nas costas da minha mão direita.
Experimentei colocar ambas as mãos no bloco de pedra, mas nada aconteceu. Pus as costas da mão direita sobre a marca da mão esquerda. Os símbolos começaram a emitir um brilho vermelho novamente. Virando a mão, coloquei-a, com a palma para baixo, sobre a marca da mão direita e senti mais do que um formigamento morno dessa vez. A conexão crepitava com energia e o calor jorrava da minha mão para a pedra.
Ouvi um ronco grave no topo do monólito e um ruído de algo sendo sorvido. Um líquido dourado transbordou sobre o topo da construção e começou a jorrar pelos quatro lados, reunindo-se em uma bacia na base. A solução reagia a alguma coisa na pedra, que sibilava e fumegava enquanto o líquido espumava, borbulhava e chiava, e por fim gotejava na bacia.
Depois que os silvos cessaram e o vapor clareou, arquejei, em choque, vendo que entalhes de glifos haviam aparecido nos quatro lados da pedra, onde antes não havia nada.
— Acho que é isto, Ren. A profecia de Durga! Era o que estávamos procurando!
Peguei a câmera digital e comecei a fotografar a estrutura. Depois tirei mais algumas fotos com a câmera descartável, como medida de segurança. Em seguida, peguei papel e carvão e fiz uma cópia das gravuras das mãos na pedra e na porta, colocando o papel sobre elas e cobrindo-as com o carvão. Eu precisava documentar tudo para que o Sr. Kadam pudesse decifrar o significado daquilo.
Rodeei o monólito tentando compreender alguns símbolos e então ouvi um grito de Ren. Eu o vi erguer a pata e colocá-la no chão novamente com cuidado. O ácido dourado estava vazando da bacia em pequenos riachos e avançando pelo piso de pedra, preenchendo todas as ranhuras.
Olhei para baixo e vi que meu cadarço fumegava onde encostava em uma poça dourada. Tínhamos os dois acabado de saltar para a parte arenosa do piso quando outro grande estrondo sacudiu o labirinto. Do teto alto começaram a cair pedras. Elas batiam no piso de pedra e se estilhaçavam. Ren me focinhou, me forçando a ir de encontro à parede, onde me abaixei, protegendo a cabeça. Os tremores aumentaram e, com um estampido ensurdecedor, o monólito se partiu em dois, caindo no chão e se despedaçando. O ácido dourado borbulhava através da bacia quebrada e foi se espalhando pelo chão, destruindo lentamente a pedra e tudo mais que tocava.
O ácido avançou em nossa direção até não haver mais para onde irmos. A porta estava bloqueada, encerrando-nos ali, e parecia não existir outra saída.
Ren se ergueu, farejou o ar e afastou-se um pouco. Apoiado nas patas traseiras, pôs as garras na parede e começou a arranhar furiosamente alguma coisa.
Aproximando-me dele, vi que ele tinha aberto um buraco e que havia estrelas do outro lado! Ajudei-o a cavar e a deslocar as pedras até que o buraco fosse grande o bastante para ele atravessá-lo com um salto. Depois que ele saiu, atirei a mochila pela abertura e a transpus, caindo do outro lado e rolando pelo chão.
Naquele momento, uma rocha imensa caiu com estardalhaço, fechando o buraco. Os tremores diminuíram até cessarem de todo. O silêncio desceu sobre a selva escura, onde ficamos parados, enquanto uma poeira fina e leve pairava no ar e caía suavemente sobre nós.