Sentei-me na beira da cama pensando no que Ren acabara de me contar. Olhando para o tigre agora, eu pensava, ou talvez assim esperasse, que podia ter imaginado tudo aquilo. Talvez a selva esteja me causando alucinações. Isso tudo é real? Tem mesmo uma pessoa sob esse pelo?
O tigre se esticou todo no chão e descansou a cabeça nas patas. Ele me olhou com seus magníficos olhos azuis por um longo momento e imediatamente eu soube que aquilo era real.
Ren dissera que o xamã só voltaria ao anoitecer e ainda faltavam várias horas até lá. A cama parecia convidativa. Seria bom tirar um cochilo, mas eu estava imunda. Concluí que um banho era a primeira coisa a fazer e fui investigar a banheira, que precisava ser enchida à moda antiga – com um balde.
Dei início à árdua tarefa de bombear água para o balde, despejá-la na banheira e começar tudo de novo. Parecia mais fácil na televisão do que na vida real. Pensei que meus braços fossem cair logo depois do terceiro balde, mas resisti à dor sabendo como seria bom tomar um banho. Meus braços cansados me convenceram de que encher a banheira até a metade era mais do que suficiente.
Tirei os tênis e comecei a desabotoar a blusa. Já estava na metade dos botões quando de repente percebi que tinha uma plateia. Juntei os dois lados da blusa, fechando-a, e me virei, dando de cara com Ren me observando.
— Que cavalheiro, hein!? Está quieto como um rato de propósito, não é? Bem, não quero saber. É melhor você ir se sentar lá fora enquanto eu tomo banho. — Agitei o braço no ar. — Vá... fique de guarda ou qualquer outra coisa.
Abri a porta e Ren vagarosamente se arrastou para fora. Apressei-me em me despir, entrei na água e comecei a esfregar minha pele suja com o sabonete de ervas caseiro do xamã. Depois de ensaboar meu cabelo e enxaguá-lo, recostei-me na banheira por um instante, pensando: Onde eu fui me meter? Por que o Sr. Kadam não me contou nada disso? O que eles esperam que eu faça? Quanto tempo vou ficar presa nesta selva indiana?
As perguntas fervilhavam na minha cabeça, afugentando pensamentos coerentes. Desistindo de tentar dar um sentido a tudo aquilo, saí da banheira, me enxuguei, me vesti e abri a porta para Ren, que estivera deitado com as costas apoiadas nela.
— Pode entrar agora. Já estou vestida.
Ren tornou a entrar enquanto eu me sentava na cama, de pernas cruzadas, e começava a desembaraçar o cabelo.
— Fique sabendo, Ren, que vou dizer poucas e boas ao Sr. Kadam depois que sairmos daqui. Aliás, você também não irá se safar. Tenho mil perguntas para fazer. Pode se preparar.
Fiz uma trança em meu cabelo e o amarrei com uma fita verde. Enfiando os braços debaixo da cabeça, me recostei no travesseiro e fitei o teto de bambu. Ren pôs a cabeça no colchão perto da minha e me olhou com a expressão de um tigre que pede desculpas.
Eu ri e lhe fiz um carinho na cabeça, a princípio sem jeito, mas ele se encostou mais e eu rapidamente superei a timidez.
— Está tudo bem, Ren. Não estou zangada. Só queria que vocês dois tivessem confiado mais em mim.
Ele lambeu minha mão e se deitou no chão para descansar. Virei-me de lado para observá-lo.
Devo ter caído no sono, pois quando abri os olhos estava escuro na cabana, exceto por uma lamparina que brilhava suavemente na cozinha.
Sentado à mesa estava um velho.
Eu me sentei na cama e esfreguei os olhos sonolentos, surpresa por ter dormido tanto tempo. O xamã estava ocupado, tirando as folhas de várias plantas espalhadas sobre a mesa. Quando me levantei, ele fez sinal para que eu me aproximasse.
— Olá, mocinha. Você dorme bastante. Muito cansada. Muito, muito cansada.
Fui até a mesa, seguida por Ren. Ele bocejou, arqueou as costas, alongou uma perna de cada vez e então se sentou aos meus pés.
— Está com fome? Coma. Boa comida, hein? Muito gostosa.
O homenzinho se levantou e serviu um pouco de um aromático ensopado de legumes temperado com ervas que borbulhava em uma panela no fogão a lenha. Ele colocou um pedaço de pão chato na borda da tigela e voltou para a mesa. Empurrando a tigela na minha direção, assentiu com satisfação, então se sentou e continuou a desfolhar as plantas.
O ensopado tinha um cheiro divino, principalmente depois de eu ter comido apenas barras de cereais por um dia e meio.
O xamã estalou a língua.
— Qual seu nome?
— Kelsey — murmurei enquanto mastigava.
— Quel-si. Você tem bom nome. Forte.
— Obrigada pela comida. Está deliciosa!
Ele grunhiu em resposta e fez um gesto com a mão, dispensando o elogio.
— Qual é o seu nome? — perguntei.
— Meu nome imenso. Me chame Phet.
Phet era um homem pequeno, magro, moreno e enrugado, com uma coroa de cabelos crespos grisalhos circundando a parte posterior da cabeça. A careca lustrosa refletia a luz da lamparina. Usava uma túnica verde-acinzentada, tecida rusticamente, e sandálias. Um sarongue estava displicentemente jogado sobre seus ombros e me surpreendia que o traje fino se mantivesse sobre sua frágil figura.
— Phet, me desculpe por invadir a sua casa. Ren me trouxe aqui. Sabe...
— Ah, Ren, o seu tigre. Sim, Phet sabe por que vocês estão aqui. Anik disse que você e Ren vinham, então fui ao lago Suki hoje para... preparação.
Servi-me mais um pouco de ensopado enquanto ele me trazia um copo de água.
— Você se refere ao Sr. Kadam? Ele lhe disse que viríamos?
— Sim, sim. Kadam disse Phet. — O xamã empurrou para um lado as plantas, abrindo espaço no canto da mesa, e então apanhou uma gaiolinha que abrigava um raro e pequenino pássaro vermelho. — Muitos pássaros no lago Suki, mas este muito extraordinário.
Ele se inclinou para a gaiola, estalou a língua para a ave e agitou o dedo. Então começou a assobiar e falou alegremente com o pássaro em sua língua nativa. Voltando sua atenção para mim, disse:
— Phet demorou dia todo para capturar. Pássaro tem canto liiin-do.
— Ele vai cantar para nós?
— Quem sabe? Às vezes pássaro nunca canta, a vida toda. Só canta para pessoa especial. Quel-si é pessoa especial?
Ele riu ruidosamente, como se tivesse contado uma piada engraçadíssima.
— Phet, como se chama este pássaro?
— Ele é da ninhada de Durga.
Terminei meu ensopado e pus a tigela de lado.
— Quem é Durga?
Ele sorriu.
— Ah. Durga liiin-da deusa e Phet — apontando para si mesmo — é humilde criado. Pássaro canta para Durga e mulher especial.
Ele tornou a apanhar suas folhas e continuou trabalhando.
— Então você é um sacerdote de Durga?
— Sacerdote instrui outra pessoa. Phet existe sozinho. Serve sozinho.
— Você gosta de viver só?
— Sozinho mente raciocina, ouve coisas, vê coisas. Mais gente, vozes demais.
Um bom argumento. Também não me importo de ficar sozinha. O único problema é que, se você está sempre sozinho, sente-se solitário.
— Humm. Seu pássaro é muito bonito.
Ele assentiu e começou a trabalhar silenciosamente.
— Posso ajudá-lo com as folhas? — perguntei.
Ele abriu um sorriso largo, revelando a ausência de vários dentes. Seus olhos quase desapareceram em meio às profundas rugas morenas.
— Você me ajudar? Sim, Quel-si. Observe Phet. Imite. Você experimenta.
Ele segurou o caule de uma planta e correu os dedos para baixo, até arrancar todas as folhas. Então me entregou um galho com minúsculas folhas, que parecia um tipo de alecrim. Arranquei as folhas perfumadas e empilhei-as na mesa.
Trabalhamos juntos por um tempo.
Aparentemente, Phet colhia as ervas como meio de vida. Ele me mostrou as diferentes plantas que havia apanhado e me disse seus nomes e para que eram usadas. Também tinha a coleção seca, que pendia do teto, e passou algum tempo descrevendo cada um dos itens. Alguns nomes me soavam familiares, mas outros eu nunca ouvira.
Ele subiu em um banquinho, catou algumas plantas secas e as substituiu por frescas. Então pegou um pilão e, depois de me ensinar a triturar as ervas, transferiu-me a tarefa de moer vários tipos delas.
Phet abriu um jarro que tinha gotas duras e douradas de resina. Cheirei o interior do pote e comentei:
— Eu me lembro deste cheiro na selva. É aquela coisa grudenta que escorre das árvores, não é?
— Muito bem, Quel-si. Seu nome olíbano. Vem da árvore Boswellia.
— Olíbano? Eu sempre me perguntei o que era isso.
Ele tirou uma lasquinha e me entregou.
— Aqui, Quel-si. Prove.
— Você quer que eu coma isso? Pensei que fosse um perfume.
— Pegue, Quel-si. Experimente.
Ele colocou um pedaço em sua própria língua e eu segui seu exemplo.
O aroma era picante e o sabor, doce. A textura era a de uma goma grudenta. Phet mascou com seus poucos dentes e sorriu para mim.
— Gosto bom, Quel-si? Agora respire longo.
— Respirar longo?
Ele demonstrou inspirando profundamente e assim eu fiz. Ele me deu um tapa nas costas que teria feito com que eu cuspisse a goma, se ela não estivesse grudada em meus dentes.
— Está vendo? Bom para estômago, hálito bom, sem preocupações. — Ele me entregou o pequeno jarro de olíbano. — Guarde este. Muito útil para você.
Eu lhe agradeci e depois de guardar o jarro em minha mochila voltei ao pilão.
— Quel-si, você fez viagem longa, sim? — perguntou ele.
— Ah, sim, muito, muito longa.
Contei-lhe como conheci Ren no Oregon e falei sobre a viagem para a Índia com o Sr. Kadam. Também descrevi a perda do caminhão, nossa caminhada pela selva e terminei com o momento em que encontramos sua casa.
Phet assentia e ouvia, atento.
— E seu tigre nem sempre é tigre. Estou correto dizendo isso?
Olhei para Ren.
— Sim, você está correto.
— Você quer ajudar o tigre?
— Quero. Estou zangada por ele ter me enganado, mas entendo por que fez isso. — Baixei a cabeça e dei de ombros. — Só quero que ele seja livre.
Nesse momento, o passarinho vermelho começou a cantar lindamente e continuou cantando pelos minutos seguintes.
Phet fechou os olhos, escutando com uma expressão de puro êxtase, e assoviou baixinho, acompanhando. Quando a ave parou de cantar, ele abriu os olhos e se virou para mim, sorrindo.
— Quel-si! Você muito especial! Sinto alegria! Phet ouviu canto de Durga! — Ele se levantou, alegre, e começou a guardar todas as plantas e os jarros. — No momento, você deve descansar. Nascer do sol importante amanhã. Phet precisa rezar na noite e você precisa dormir. Embarcar em sua travessia amanhã. Dura e difícil. À primeira luz, Phet ajuda você na companhia do tigre. Segredo de Durga vai ser revelado. Agora vá dormir.
— Acabei de tirar um bom cochilo e ainda não estou com sono. Não posso ficar com você e fazer mais perguntas?
— Não. Phet vai rezar. Preciso expressar agradecimento a Durga pelo privilégio da bênção imprevista. Seu sono essencial. Phet faz infusão para aumentar sono de Quel-si.
Ele colocou várias folhas em uma xícara e despejou água fervente sobre elas. Depois de um minuto, me entregou a xícara e indicou que eu bebesse. Tinha cheiro de chá de hortelã com um toque de um condimento semelhante ao cravo. Dei um gole e gostei do sabor. Ele me enxotou para a cama e mandou Ren me acompanhar.
Depois de diminuir a intensidade do lampião, pôs uma sacola no ombro, sorriu para mim e saiu, fechando a porta silenciosamente.
Deitei-me na cama pensando que dormir seria impossível, mas sem muita demora mergulhei em um sono relaxante e sem sonhos.
Na manhã seguinte, Phet me acordou cedo batendo palmas bem alto.
— Olá, Quel-si e Ren. Phet reza enquanto vocês dormem. Como consequência, Durga faz milagre. Vocês precisam acordar! Preparem-se e nós conversamos.
— Certo, Phet, vou me apressar.
Puxei a cortina à minha volta e me arrumei.
Na cozinha, Phet preparava ovos e já servira um grande prato deles no chão para Ren. Lavei as mãos com o sabonete de ervas e me sentei à mesa. Desmanchei a trança e penteei os cabelos ondulados com os dedos.
Ren parou de comer, engoliu seu bocado de ovos e ficou me olhando atentamente enquanto eu trabalhava em meu cabelo.
— Ren, pare de me olhar! Coma os ovos. Você deve estar morrendo de fome.
Prendi o cabelo em um rabo de cavalo e ele finalmente se voltou para sua comida. Phet também me serviu um prato contendo uma pequena salada com uma estranha variedade de verduras de sua horta e uma bela omelete. Então ele se sentou para conversar conosco.
— Quel-si, eu sou homem facilitador agora. Durga falou comigo. Ela vai ajudar vocês. Numerosos anos passados, Anik Kadam procura remédio para confortar Ren. Eu digo a ele Durga aprecia o tigre, mas ninguém pode aliviá-lo. Ele me pergunta o que pode fazer. Naquela noite, Phet sonha com dois tigres, um pálido como a lua; outro negro, à semelhança da noite. Durga fala baixinho no meu ouvido. Ela diz apenas garota especial pode quebrar maldição. Phet sabe: garota protegida de Durga. Ela luta pelo tigre. Eu digo Anik: atento garota especial da deusa. Dou indicação: garota sozinha, cabelo castanho, olhos escuros. Devotada ao tigre e sua palavra poderosa como melodia da deusa. Ajuda tigre ser livre outra vez. Eu digo Anik: descubra protegida de Durga e traga para mim.
Ele colocou as mãos morenas e deformadas sobre a mesa e se inclinou para mim.
— Quel-si, Phet percebe você excepcional protegida de Durga.
— Phet, do que você está falando?
— Você guerreira forte, bonita, como Durga.
— Eu? Uma guerreira forte e bonita? Acho que você está com a garota errada.
Ren rosnou baixo e Phet estalou a língua.
— Não. O passarinho de Durga canta para você. Você garota certa! Não jogue fora o destino, como erva daninha! Flor preciosa. Paciência. Espere florescer.
— Está bem, Phet, vou dar o melhor de mim. O que tenho que fazer? Como posso quebrar a maldição?
— Durga ajuda você na caverna Kanheri. Use chave para abrir câmara.
— Que chave? — perguntei.
— Chave é célebre Selo do Império Mujulaain. Tigre sabe. Encontre lugar subterrâneo na caverna. Selo é chave. Durga leva você à resposta. Liberta tigre.
Comecei a tremer incontrolavelmente. Aquilo era demais para absorver de uma só vez. Mensagens em cavernas secretas, ser a favorita de uma deusa indiana e partir em uma aventura na selva com um tigre? Eu me sentia assoberbada. Minha mente gritava: Não é possível! Não é possível! Como foi que fiquei presa nessa situação bizarra? Ah, sim. Eu me voluntariei.
Phet me observava com curiosidade. Ele pôs a mão sobre a minha. Era quente e delicada, e me acalmou instantaneamente.
— Quel-si, acredite em você mesma. Você mulher forte. Tigre protege você.
Baixei os olhos para Ren, que estava sentado no piso de bambu, me olhando com uma expressão preocupada.
— Eu sei que ele vai cuidar de mim. E quero muito ajudá-lo a quebrar a maldição. É só um pouquinho... assustador.
Phet apertou minha mão e Ren levou uma pata ao meu joelho. Reprimi o medo e o empurrei para o fundo da mente.
— Então, Phet, aonde vamos agora? À caverna?
— Tigre sabe aonde ir. Siga tigre. Pegue Selo. Devem partir logo. Antes de ir, Quel-si, Phet confere a você marca da deusa e reza.
Phet apanhou um pequeno arranjo de folhas que havíamos selecionado na noite anterior. Ele o agitou no ar em torno da minha cabeça, descendo por cada um dos meus braços, enquanto cantava baixinho. Então arrancou uma folhinha e a levou aos meus olhos, nariz, boca e testa. Depois voltou-se para Ren e cumpriu o mesmo ritual.
Em seguida, levantou-se e trouxe um pequeno jarro contendo um líquido marrom. Ele tirou um galho fino que fora despojado das folhas e o mergulhou levemente no jarro. Tomando minha mão direita, começou a fazer desenhos geométricos.
O líquido tinha um cheiro pungente e os arabescos que ele desenhou me lembravam os desenhos de hena nas mãos.
Quando chegou ao fim, virei a mão de um lado para outro, admirando a habilidade necessária para criar o elaborado trabalho de arte. Os padrões que ele desenhou cobriam o dorso da minha mão direita, assim como a palma e as pontas dos dedos.
— Para que serve isso? — perguntei.
— Este símbolo poderoso. Marca permanece muitos dias.
Phet reuniu todas as folhas e os galhos, atirou-os no velho fogão a lenha de ferro fundido e pairou acima dele por um momento, a fim de inalar a fumaça. Em seguida, virou-se para mim, fazendo uma mesura.
— Quel-si, agora hora de partir.
Ren saiu pela porta. Curvei-me em retribuição a Phet e então o abracei rapidamente.
— Obrigada por tudo. Agradeço de coração sua hospitalidade e sua generosidade.
Ele sorriu calorosamente para mim e apertou minha mão. Apanhei minha bolsa, a mochila, abaixei-me para passar pela porta e saí, seguindo Ren.
Sorrindo, Phet foi até a portinha e acenou em despedida.
O tigre se esticou todo no chão e descansou a cabeça nas patas. Ele me olhou com seus magníficos olhos azuis por um longo momento e imediatamente eu soube que aquilo era real.
Ren dissera que o xamã só voltaria ao anoitecer e ainda faltavam várias horas até lá. A cama parecia convidativa. Seria bom tirar um cochilo, mas eu estava imunda. Concluí que um banho era a primeira coisa a fazer e fui investigar a banheira, que precisava ser enchida à moda antiga – com um balde.
Dei início à árdua tarefa de bombear água para o balde, despejá-la na banheira e começar tudo de novo. Parecia mais fácil na televisão do que na vida real. Pensei que meus braços fossem cair logo depois do terceiro balde, mas resisti à dor sabendo como seria bom tomar um banho. Meus braços cansados me convenceram de que encher a banheira até a metade era mais do que suficiente.
Tirei os tênis e comecei a desabotoar a blusa. Já estava na metade dos botões quando de repente percebi que tinha uma plateia. Juntei os dois lados da blusa, fechando-a, e me virei, dando de cara com Ren me observando.
— Que cavalheiro, hein!? Está quieto como um rato de propósito, não é? Bem, não quero saber. É melhor você ir se sentar lá fora enquanto eu tomo banho. — Agitei o braço no ar. — Vá... fique de guarda ou qualquer outra coisa.
Abri a porta e Ren vagarosamente se arrastou para fora. Apressei-me em me despir, entrei na água e comecei a esfregar minha pele suja com o sabonete de ervas caseiro do xamã. Depois de ensaboar meu cabelo e enxaguá-lo, recostei-me na banheira por um instante, pensando: Onde eu fui me meter? Por que o Sr. Kadam não me contou nada disso? O que eles esperam que eu faça? Quanto tempo vou ficar presa nesta selva indiana?
As perguntas fervilhavam na minha cabeça, afugentando pensamentos coerentes. Desistindo de tentar dar um sentido a tudo aquilo, saí da banheira, me enxuguei, me vesti e abri a porta para Ren, que estivera deitado com as costas apoiadas nela.
— Pode entrar agora. Já estou vestida.
Ren tornou a entrar enquanto eu me sentava na cama, de pernas cruzadas, e começava a desembaraçar o cabelo.
— Fique sabendo, Ren, que vou dizer poucas e boas ao Sr. Kadam depois que sairmos daqui. Aliás, você também não irá se safar. Tenho mil perguntas para fazer. Pode se preparar.
Fiz uma trança em meu cabelo e o amarrei com uma fita verde. Enfiando os braços debaixo da cabeça, me recostei no travesseiro e fitei o teto de bambu. Ren pôs a cabeça no colchão perto da minha e me olhou com a expressão de um tigre que pede desculpas.
Eu ri e lhe fiz um carinho na cabeça, a princípio sem jeito, mas ele se encostou mais e eu rapidamente superei a timidez.
— Está tudo bem, Ren. Não estou zangada. Só queria que vocês dois tivessem confiado mais em mim.
Ele lambeu minha mão e se deitou no chão para descansar. Virei-me de lado para observá-lo.
Devo ter caído no sono, pois quando abri os olhos estava escuro na cabana, exceto por uma lamparina que brilhava suavemente na cozinha.
Sentado à mesa estava um velho.
Eu me sentei na cama e esfreguei os olhos sonolentos, surpresa por ter dormido tanto tempo. O xamã estava ocupado, tirando as folhas de várias plantas espalhadas sobre a mesa. Quando me levantei, ele fez sinal para que eu me aproximasse.
— Olá, mocinha. Você dorme bastante. Muito cansada. Muito, muito cansada.
Fui até a mesa, seguida por Ren. Ele bocejou, arqueou as costas, alongou uma perna de cada vez e então se sentou aos meus pés.
— Está com fome? Coma. Boa comida, hein? Muito gostosa.
O homenzinho se levantou e serviu um pouco de um aromático ensopado de legumes temperado com ervas que borbulhava em uma panela no fogão a lenha. Ele colocou um pedaço de pão chato na borda da tigela e voltou para a mesa. Empurrando a tigela na minha direção, assentiu com satisfação, então se sentou e continuou a desfolhar as plantas.
O ensopado tinha um cheiro divino, principalmente depois de eu ter comido apenas barras de cereais por um dia e meio.
O xamã estalou a língua.
— Qual seu nome?
— Kelsey — murmurei enquanto mastigava.
— Quel-si. Você tem bom nome. Forte.
— Obrigada pela comida. Está deliciosa!
Ele grunhiu em resposta e fez um gesto com a mão, dispensando o elogio.
— Qual é o seu nome? — perguntei.
— Meu nome imenso. Me chame Phet.
Phet era um homem pequeno, magro, moreno e enrugado, com uma coroa de cabelos crespos grisalhos circundando a parte posterior da cabeça. A careca lustrosa refletia a luz da lamparina. Usava uma túnica verde-acinzentada, tecida rusticamente, e sandálias. Um sarongue estava displicentemente jogado sobre seus ombros e me surpreendia que o traje fino se mantivesse sobre sua frágil figura.
— Phet, me desculpe por invadir a sua casa. Ren me trouxe aqui. Sabe...
— Ah, Ren, o seu tigre. Sim, Phet sabe por que vocês estão aqui. Anik disse que você e Ren vinham, então fui ao lago Suki hoje para... preparação.
Servi-me mais um pouco de ensopado enquanto ele me trazia um copo de água.
— Você se refere ao Sr. Kadam? Ele lhe disse que viríamos?
— Sim, sim. Kadam disse Phet. — O xamã empurrou para um lado as plantas, abrindo espaço no canto da mesa, e então apanhou uma gaiolinha que abrigava um raro e pequenino pássaro vermelho. — Muitos pássaros no lago Suki, mas este muito extraordinário.
Ele se inclinou para a gaiola, estalou a língua para a ave e agitou o dedo. Então começou a assobiar e falou alegremente com o pássaro em sua língua nativa. Voltando sua atenção para mim, disse:
— Phet demorou dia todo para capturar. Pássaro tem canto liiin-do.
— Ele vai cantar para nós?
— Quem sabe? Às vezes pássaro nunca canta, a vida toda. Só canta para pessoa especial. Quel-si é pessoa especial?
Ele riu ruidosamente, como se tivesse contado uma piada engraçadíssima.
— Phet, como se chama este pássaro?
— Ele é da ninhada de Durga.
Terminei meu ensopado e pus a tigela de lado.
— Quem é Durga?
Ele sorriu.
— Ah. Durga liiin-da deusa e Phet — apontando para si mesmo — é humilde criado. Pássaro canta para Durga e mulher especial.
Ele tornou a apanhar suas folhas e continuou trabalhando.
— Então você é um sacerdote de Durga?
— Sacerdote instrui outra pessoa. Phet existe sozinho. Serve sozinho.
— Você gosta de viver só?
— Sozinho mente raciocina, ouve coisas, vê coisas. Mais gente, vozes demais.
Um bom argumento. Também não me importo de ficar sozinha. O único problema é que, se você está sempre sozinho, sente-se solitário.
— Humm. Seu pássaro é muito bonito.
Ele assentiu e começou a trabalhar silenciosamente.
— Posso ajudá-lo com as folhas? — perguntei.
Ele abriu um sorriso largo, revelando a ausência de vários dentes. Seus olhos quase desapareceram em meio às profundas rugas morenas.
— Você me ajudar? Sim, Quel-si. Observe Phet. Imite. Você experimenta.
Ele segurou o caule de uma planta e correu os dedos para baixo, até arrancar todas as folhas. Então me entregou um galho com minúsculas folhas, que parecia um tipo de alecrim. Arranquei as folhas perfumadas e empilhei-as na mesa.
Trabalhamos juntos por um tempo.
Aparentemente, Phet colhia as ervas como meio de vida. Ele me mostrou as diferentes plantas que havia apanhado e me disse seus nomes e para que eram usadas. Também tinha a coleção seca, que pendia do teto, e passou algum tempo descrevendo cada um dos itens. Alguns nomes me soavam familiares, mas outros eu nunca ouvira.
Ele subiu em um banquinho, catou algumas plantas secas e as substituiu por frescas. Então pegou um pilão e, depois de me ensinar a triturar as ervas, transferiu-me a tarefa de moer vários tipos delas.
Phet abriu um jarro que tinha gotas duras e douradas de resina. Cheirei o interior do pote e comentei:
— Eu me lembro deste cheiro na selva. É aquela coisa grudenta que escorre das árvores, não é?
— Muito bem, Quel-si. Seu nome olíbano. Vem da árvore Boswellia.
— Olíbano? Eu sempre me perguntei o que era isso.
Ele tirou uma lasquinha e me entregou.
— Aqui, Quel-si. Prove.
— Você quer que eu coma isso? Pensei que fosse um perfume.
— Pegue, Quel-si. Experimente.
Ele colocou um pedaço em sua própria língua e eu segui seu exemplo.
O aroma era picante e o sabor, doce. A textura era a de uma goma grudenta. Phet mascou com seus poucos dentes e sorriu para mim.
— Gosto bom, Quel-si? Agora respire longo.
— Respirar longo?
Ele demonstrou inspirando profundamente e assim eu fiz. Ele me deu um tapa nas costas que teria feito com que eu cuspisse a goma, se ela não estivesse grudada em meus dentes.
— Está vendo? Bom para estômago, hálito bom, sem preocupações. — Ele me entregou o pequeno jarro de olíbano. — Guarde este. Muito útil para você.
Eu lhe agradeci e depois de guardar o jarro em minha mochila voltei ao pilão.
— Quel-si, você fez viagem longa, sim? — perguntou ele.
— Ah, sim, muito, muito longa.
Contei-lhe como conheci Ren no Oregon e falei sobre a viagem para a Índia com o Sr. Kadam. Também descrevi a perda do caminhão, nossa caminhada pela selva e terminei com o momento em que encontramos sua casa.
Phet assentia e ouvia, atento.
— E seu tigre nem sempre é tigre. Estou correto dizendo isso?
Olhei para Ren.
— Sim, você está correto.
— Você quer ajudar o tigre?
— Quero. Estou zangada por ele ter me enganado, mas entendo por que fez isso. — Baixei a cabeça e dei de ombros. — Só quero que ele seja livre.
Nesse momento, o passarinho vermelho começou a cantar lindamente e continuou cantando pelos minutos seguintes.
Phet fechou os olhos, escutando com uma expressão de puro êxtase, e assoviou baixinho, acompanhando. Quando a ave parou de cantar, ele abriu os olhos e se virou para mim, sorrindo.
— Quel-si! Você muito especial! Sinto alegria! Phet ouviu canto de Durga! — Ele se levantou, alegre, e começou a guardar todas as plantas e os jarros. — No momento, você deve descansar. Nascer do sol importante amanhã. Phet precisa rezar na noite e você precisa dormir. Embarcar em sua travessia amanhã. Dura e difícil. À primeira luz, Phet ajuda você na companhia do tigre. Segredo de Durga vai ser revelado. Agora vá dormir.
— Acabei de tirar um bom cochilo e ainda não estou com sono. Não posso ficar com você e fazer mais perguntas?
— Não. Phet vai rezar. Preciso expressar agradecimento a Durga pelo privilégio da bênção imprevista. Seu sono essencial. Phet faz infusão para aumentar sono de Quel-si.
Ele colocou várias folhas em uma xícara e despejou água fervente sobre elas. Depois de um minuto, me entregou a xícara e indicou que eu bebesse. Tinha cheiro de chá de hortelã com um toque de um condimento semelhante ao cravo. Dei um gole e gostei do sabor. Ele me enxotou para a cama e mandou Ren me acompanhar.
Depois de diminuir a intensidade do lampião, pôs uma sacola no ombro, sorriu para mim e saiu, fechando a porta silenciosamente.
Deitei-me na cama pensando que dormir seria impossível, mas sem muita demora mergulhei em um sono relaxante e sem sonhos.
Na manhã seguinte, Phet me acordou cedo batendo palmas bem alto.
— Olá, Quel-si e Ren. Phet reza enquanto vocês dormem. Como consequência, Durga faz milagre. Vocês precisam acordar! Preparem-se e nós conversamos.
— Certo, Phet, vou me apressar.
Puxei a cortina à minha volta e me arrumei.
Na cozinha, Phet preparava ovos e já servira um grande prato deles no chão para Ren. Lavei as mãos com o sabonete de ervas e me sentei à mesa. Desmanchei a trança e penteei os cabelos ondulados com os dedos.
Ren parou de comer, engoliu seu bocado de ovos e ficou me olhando atentamente enquanto eu trabalhava em meu cabelo.
— Ren, pare de me olhar! Coma os ovos. Você deve estar morrendo de fome.
Prendi o cabelo em um rabo de cavalo e ele finalmente se voltou para sua comida. Phet também me serviu um prato contendo uma pequena salada com uma estranha variedade de verduras de sua horta e uma bela omelete. Então ele se sentou para conversar conosco.
— Quel-si, eu sou homem facilitador agora. Durga falou comigo. Ela vai ajudar vocês. Numerosos anos passados, Anik Kadam procura remédio para confortar Ren. Eu digo a ele Durga aprecia o tigre, mas ninguém pode aliviá-lo. Ele me pergunta o que pode fazer. Naquela noite, Phet sonha com dois tigres, um pálido como a lua; outro negro, à semelhança da noite. Durga fala baixinho no meu ouvido. Ela diz apenas garota especial pode quebrar maldição. Phet sabe: garota protegida de Durga. Ela luta pelo tigre. Eu digo Anik: atento garota especial da deusa. Dou indicação: garota sozinha, cabelo castanho, olhos escuros. Devotada ao tigre e sua palavra poderosa como melodia da deusa. Ajuda tigre ser livre outra vez. Eu digo Anik: descubra protegida de Durga e traga para mim.
Ele colocou as mãos morenas e deformadas sobre a mesa e se inclinou para mim.
— Quel-si, Phet percebe você excepcional protegida de Durga.
— Phet, do que você está falando?
— Você guerreira forte, bonita, como Durga.
— Eu? Uma guerreira forte e bonita? Acho que você está com a garota errada.
Ren rosnou baixo e Phet estalou a língua.
— Não. O passarinho de Durga canta para você. Você garota certa! Não jogue fora o destino, como erva daninha! Flor preciosa. Paciência. Espere florescer.
— Está bem, Phet, vou dar o melhor de mim. O que tenho que fazer? Como posso quebrar a maldição?
— Durga ajuda você na caverna Kanheri. Use chave para abrir câmara.
— Que chave? — perguntei.
— Chave é célebre Selo do Império Mujulaain. Tigre sabe. Encontre lugar subterrâneo na caverna. Selo é chave. Durga leva você à resposta. Liberta tigre.
Comecei a tremer incontrolavelmente. Aquilo era demais para absorver de uma só vez. Mensagens em cavernas secretas, ser a favorita de uma deusa indiana e partir em uma aventura na selva com um tigre? Eu me sentia assoberbada. Minha mente gritava: Não é possível! Não é possível! Como foi que fiquei presa nessa situação bizarra? Ah, sim. Eu me voluntariei.
Phet me observava com curiosidade. Ele pôs a mão sobre a minha. Era quente e delicada, e me acalmou instantaneamente.
— Quel-si, acredite em você mesma. Você mulher forte. Tigre protege você.
Baixei os olhos para Ren, que estava sentado no piso de bambu, me olhando com uma expressão preocupada.
— Eu sei que ele vai cuidar de mim. E quero muito ajudá-lo a quebrar a maldição. É só um pouquinho... assustador.
Phet apertou minha mão e Ren levou uma pata ao meu joelho. Reprimi o medo e o empurrei para o fundo da mente.
— Então, Phet, aonde vamos agora? À caverna?
— Tigre sabe aonde ir. Siga tigre. Pegue Selo. Devem partir logo. Antes de ir, Quel-si, Phet confere a você marca da deusa e reza.
Phet apanhou um pequeno arranjo de folhas que havíamos selecionado na noite anterior. Ele o agitou no ar em torno da minha cabeça, descendo por cada um dos meus braços, enquanto cantava baixinho. Então arrancou uma folhinha e a levou aos meus olhos, nariz, boca e testa. Depois voltou-se para Ren e cumpriu o mesmo ritual.
Em seguida, levantou-se e trouxe um pequeno jarro contendo um líquido marrom. Ele tirou um galho fino que fora despojado das folhas e o mergulhou levemente no jarro. Tomando minha mão direita, começou a fazer desenhos geométricos.
O líquido tinha um cheiro pungente e os arabescos que ele desenhou me lembravam os desenhos de hena nas mãos.
Quando chegou ao fim, virei a mão de um lado para outro, admirando a habilidade necessária para criar o elaborado trabalho de arte. Os padrões que ele desenhou cobriam o dorso da minha mão direita, assim como a palma e as pontas dos dedos.
— Para que serve isso? — perguntei.
— Este símbolo poderoso. Marca permanece muitos dias.
Phet reuniu todas as folhas e os galhos, atirou-os no velho fogão a lenha de ferro fundido e pairou acima dele por um momento, a fim de inalar a fumaça. Em seguida, virou-se para mim, fazendo uma mesura.
— Quel-si, agora hora de partir.
Ren saiu pela porta. Curvei-me em retribuição a Phet e então o abracei rapidamente.
— Obrigada por tudo. Agradeço de coração sua hospitalidade e sua generosidade.
Ele sorriu calorosamente para mim e apertou minha mão. Apanhei minha bolsa, a mochila, abaixei-me para passar pela porta e saí, seguindo Ren.
Sorrindo, Phet foi até a portinha e acenou em despedida.