Na manhã seguinte, acordei cheia de energia, sentindo-me otimista e empolgada com a viagem. Depois de um banho e de um rápido café da manhã, peguei minha bolsa, abracei Sarah novamente, pois ela era a única acordada, e corri para a garagem.
Entrei no estacionamento do circo e parei ao lado de um caminhão de tamanho médio. O veículo tinha um grosso para-brisa, rodas muito grandes e portas minúsculas. Atrás da cabine havia uma carroceria aberta, na qual se via uma estrutura quadrada de aço com um cortinado de lona cinza.
A rampa estava abaixada na traseira: o Sr. Davis colocava Ren na jaula. Ren usava uma coleira grossa no pescoço, firmemente presa a uma longa corrente que tanto o Sr. Davis quanto Matt seguravam com força. O tigre parecia muito calmo, apesar do caos que se desenrolava à sua volta. Ele me olhava, esperando paciente enquanto os homens preparavam o caminhão.
Por fim, tudo ficou pronto e, a um comando do Sr. Davis, Ren saltou para a caixa de metal. O Sr. Kadam pegou minha bolsa e passou a alça pelo ombro.
— Srta. Kelsey, prefere ir no caminhão com o motorista ou me acompanhar no conversível? — perguntou ele.
Olhei para o caminhão de rodas enormes e rapidamente tomei minha decisão.
— Prefiro acompanhar o senhor. Eu jamais trocaria um conversível por um caminhão desses.
Ele riu, concordando, antes de guardar minha bolsa no porta-malas do Bentley. Sabendo que era hora de ir, acenei para o Sr. Davis e para Matt, entrei novamente no conversível e afivelei o cinto de segurança. Antes que eu me desse conta, seguíamos pela rodovia interestadual atrás do caminhão.
Era difícil conversar por causa do vento, então eu simplesmente reclinei a cabeça para trás, apoiando-a no couro macio, e fiquei admirando a paisagem. Na verdade, seguíamos devagar – a 90 quilômetros por hora, cerca de 15 quilômetros abaixo do limite de velocidade daquela estrada.
Passantes curiosos desaceleravam para olhar nosso pequeno comboio. O trânsito foi se tornando mais pesado perto de Wilsonville, onde alcançamos os carros que haviam nos ultrapassado mais cedo.
O aeroporto ficava uns 30 quilômetros adiante, numa pequena estrada que saía da interestadual como a alça de uma xícara. O caminhão à nossa frente entrou na rua do aeroporto e então parou em uma rua lateral, atrás de uns hangares enormes. Vários aviões de carga estavam enfileirados ali, sendo carregados. O Sr. Kadam abriu caminho entre as pessoas e os equipamentos até alcançar um avião particular, em cuja lateral se lia Linhas Aéreas Tigre Voador, exibindo a imagem de um tigre correndo. Virei-me para o Sr. Kadam, apontei com a cabeça para o avião e disse:
— Tigre Voador, hein?
Ele sorriu.
— É uma longa história, Srta. Kelsey, que vou lhe contar no avião.
Tirando minha bolsa do porta-malas, ele entregou as chaves a um homem ali perto que imediatamente entrou no carro e o levou dali.
Nós dois ficamos observando enquanto vários trabalhadores corpulentos erguiam a caixa do tigre com uma empilhadeira motorizada e habilmente o transferiam para a jaula ampla e apropriada do avião.
Satisfeitos ao ver o tigre confortavelmente em segurança, subimos pela escada retrátil da aeronave e entramos.
Fiquei impressionada com a opulência do interior.
O avião era decorado em preto, branco e prateado, o que o fazia parecer muito moderno. As poltronas de couro preto pareciam bastante aconchegantes, bem diferentes dos assentos de aviões comerciais, e reclinavam completamente!
Uma comissária de bordo muito bonita, com cabelos pretos e longos, nos apontou os lugares e se apresentou:
— Meu nome é Nilima. Por favor, sente-se, Srta. Kelsey — disse ela, com um sotaque parecido com o do Sr. Kadam.
— Você também é indiana?
Nilima assentiu e sorriu para mim enquanto afofava um travesseiro atrás da minha cabeça. Em seguida, ela me trouxe um cobertor e várias revistas. O Sr. Kadam ocupou a espaçosa poltrona diante da minha. Ele afivelou logo o cinto de segurança, dispensando o travesseiro e o cobertor.
Eu viajara de avião umas poucas vezes antes, de férias com minha família. Durante o voo propriamente dito, em geral eu ficava bastante tranquila, mas decolagens e aterrissagens me deixavam tensa e ansiosa. O som das turbinas era o que mais me incomodava – o rugido ameaçador quando ganhavam vida – e a sensação de ser empurrada contra a cadeira enquanto o avião se descolava do chão sempre me deixava enjoada. As aterrissagens não eram mais divertidas, mas em geral eu estava tão ansiosa para saltar do avião que esse momento passava rapidinho.
O luxo do avião e do belo conversível me fizeram refletir sobre o empregador do Sr. Kadam. Deve ser alguém muito rico e poderoso na Índia. Tentei pensar em quem poderia ser, mas não consegui formular nenhum palpite.
Talvez seja um daqueles atores de Bollywood. Quanto dinheiro será que eles ganham? Não, não pode ser isso. O Sr. Kadam trabalha para ele há muito tempo, então o homem deve ser velho.
O avião ganhara velocidade e decolara enquanto eu ponderava sobre o misterioso empregador do Sr. Kadam. E eu nem percebera! Olhei pela janela e observei o Rio Colúmbia ir ficando cada vez menor até atravessarmos a camada de nuvens e eu não conseguir mais ver terra firme.
Cerca de uma hora e meia depois, já tendo lido uma revista inteira e terminado o sudoku e as palavras cruzadas das últimas páginas, deixei de lado a revista e olhei para o Sr. Kadam. Eu não queria incomodá-lo, mas tinha toneladas de perguntas.
Pigarreei. Ele respondeu sorrindo para mim acima da revista de atualidades. Naturalmente, a primeira coisa que me saiu pela boca foi a pergunta que menos me interessava.
— Então, Sr. Kadam, me fale sobre as Linhas Aéreas Tigre Voador.
Ele fechou a revista antes de pousá-la na mesa.
— Humm... por onde começar? Meu empregador era o proprietário e eu o administrador de uma empresa de carga aérea chamada Linhas Aéreas de Fretamento e Carga Tigre Voador, ou, encurtando, Linhas Aéreas Tigre Voador. Era a maior empresa de charter transatlântico nas décadas de 1940 e 1950. Voávamos para quase todos os continentes do mundo.
— De onde veio o nome Tigre Voador?
Ele mudou ligeiramente de posição na cadeira.
— Além de possuir certa afeição por tigres, meu empregador achava interessante o fato de que alguns dos primeiros pilotos haviam conduzido aviões “tigres” durante a Segunda Guerra Mundial. Talvez você se lembre de que eram pintados como tubarões-tigres a fim de parecerem ferozes na batalha. Mas, no fim da década de 1980, meu empregador resolveu vender a empresa. E manteve só um avião, este, para uso pessoal.
— Qual é o nome do seu empregador? Eu vou conhecê-lo?
Seus olhos brilharam.
— Com toda a certeza. Ele se apresentará quando você pousar na Índia. E vai gostar de conversar com você. — Ele desviou o olhar para os fundos do avião por um momento. Sorrindo com uma expressão encorajadora, ele olhou para mim e acrescentou: — Mais perguntas?
— Então o senhor é uma espécie de vice-presidente para ele?
O cavalheiro indiano achou graça.
— Digamos que ele é um homem muito rico que confia totalmente em mim para cuidar de seus assuntos profissionais.
— Ah, então o senhor é o Sr. Smithers e ele é o Sr. Burns.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Não entendi.
Corei e agitei a mão no ar.
— Deixe para lá. São personagens dos Simpsons. Provavelmente o senhor nunca viu a série.
— Infelizmente não, Srta. Kelsey.
O Sr. Kadam parecia ligeiramente desconfortável ou nervoso quando falava sobre seu patrão, mas gostava de falar de aviões, então eu o incentivei a continuar. Mudando de posição na cadeira, tirei os sapatos, cruzei as pernas e perguntei:
— Que tipo de carga vocês transportavam?
Ele relaxou visivelmente.
— Ao longo dos anos, a empresa transportou uma coleção e tanto de cargas interessantes. Por exemplo, ganhamos o contrato para carregar a famosa baleia assassina do Aquatic World, assim como a tocha da Estátua da Liberdade. Na maior parte do tempo, porém, a carga era bastante comum. Levamos coisas como enlatados, produtos têxteis e embalagens. Uma variedade e tanto, de fato.
— Como é que se coloca uma baleia em um avião?
— Uma nadadeira de cada vez, Srta. Kelsey. Uma nadadeira de cada vez.
O rosto do Sr. Kadam continuou sério. Eu ri com vontade. Enxugando uma lágrima no canto do olho, indaguei:
— Então o senhor administrava a empresa?
— Sim. Passei muito tempo desenvolvendo as Linhas Aéreas Tigre Voador. Gosto muito de aviação. — Ele fez um gesto, indicando a aeronave. — Estamos voando aqui no chamado MD-11, um McDonnell Douglas. Trata-se de um modelo de grande autonomia, o que é necessário quando se cruza o oceano. O interior é espaçoso e confortável, como deve ter notado. Ele tem duas turbinas sob as asas e uma terceira atrás, na base do estabilizador vertical.
— Humm, parece... poderoso.
Ele se inclinou um pouco para a frente e falou, entusiasmado:
— Embora este avião seja de um modelo mais antigo, ainda proporciona uma viagem muito rápida.
Ele havia se empolgado muito durante sua exposição técnica. A única coisa que gravei de todas aquelas explicações é que aquele era um avião muito bom e que aparentemente tinha três turbinas.
Ele deve ter percebido que eu não tinha a menor ideia do que ele estava falando, pois olhou para o meu rosto perplexo e deu uma risadinha.
— Talvez devêssemos falar sobre outro assunto. Quer conhecer alguns mitos da minha terra sobre os tigres?
Assenti com empolgação, incentivando-o a continuar. Joguei minhas pernas para o lado, sobre a poltrona. Então puxei o cobertor até o queixo e me recostei no travesseiro.
A entonação do Sr. Kadam mudou quando ele entrou no modo de contador de histórias. Seu sotaque indiano ficou mais pronunciado; as palavras, mais melódicas. Eu gostava de ouvir a cadência de sua voz.
— O tigre é considerado o grande protetor da selva. Vários mitos indianos atribuem grandes poderes ao animal. Ele combate bravamente imensos dragões, mas também ajuda camponeses. Uma de suas tarefas é deslocar nuvens de chuva com a cauda, pondo fim à seca que aflige aldeões humildes.
— Gosto muito de mitologia. As pessoas na Índia ainda acreditam nesses mitos sobre tigres?
— Sim, principalmente nas zonas rurais. Mas em todas as partes do país você vai encontrar quem acredite, mesmo entre aqueles que se consideram parte do mundo moderno. Você sabia que alguns afirmam que o ronronar de um tigre acaba com os pesadelos?
— O Sr. Davis disse que os tigres não ronronam. Ele contou que grandes felinos que rosnam e rugem não podem ronronar, mas eu juro que às vezes Ren ronrona.
— Ah, você está certa. A ciência moderna diz que o tigre não pode produzir o som que identificamos como ronronar. Vários dos grandes felinos emitem um som vibrante, mas não é exatamente a mesma coisa que o ronronar de um gato doméstico. Ainda assim, existem alguns mitos indianos que falam do ronronar do tigre. Diz-se também que o corpo de um tigre tem propriedades curativas únicas. Este é um dos motivos por que regularmente são caçados e mortos, e seus corpos, mutilados ou vendidos em partes.
Ele inclinou-se para trás na poltrona, relaxando.
— No islamismo, acredita-se que Alá irá enviar um tigre para defender e proteger aqueles que o seguirem fielmente, mas também enviará um tigre para punir aqueles que considera traidores.
— Acho que se eu fosse muçulmana fugiria de tigres, só por garantia.
Ele riu.
— Sim, muito sábio da sua parte. Confesso que absorvi parte do fascínio que meu empregador tem por tigres e estudei numerosos textos sobre a mitologia dos tigres indianos, em particular.
Ele deixou a voz morrer por um momento, perdido em pensamentos, os olhos vidrados. O dedo indicador esfregava um ponto na gola aberta e percebi que ele usava um pequeno pingente em forma de cunha numa corrente que estava parcialmente escondida sob a camisa.
Quando sua atenção se voltou outra vez para mim, ele baixou a mão para o colo e prosseguiu:
— Os tigres também são um símbolo de poder e imortalidade. Diz-se que podem derrotar o mal por vários meios. São chamados doadores de vida, sentinelas, guardiões e defensores.
Estiquei as pernas e acomodei melhor a cabeça no travesseiro.
— Existe algum tipo de lenda com tigres do tipo “donzela em perigo”?
Ele pensou um pouco.
— Ah, sim. Na verdade, uma das minhas histórias favoritas é sobre um tigre branco que cria asas e salva a princesa que o ama de um destino cruel. Levando-a nas costas, eles abrem mão de suas formas corpóreas e se tornam uma única risca branca subindo para o céu, finalmente juntando-se às estrelas da Via Láctea. Juntos, eles passam a eternidade vigiando e protegendo as pessoas na Terra.
Bocejei, sonolenta.
— Isso é muito bonito. Acho que é a minha preferida também.
Sua voz suave e melódica havia me relaxado. Apesar de meus esforços para ficar acordada e ouvir, eu estava caindo no sono.
Ele continuou, sem se abalar:
— Em Nagaland, o povo acredita que tigres e homens são irmãos. De acordo com uma lenda, a Mãe Terra era a mãe do tigre e também do homem. Houve um tempo em que os dois irmãos eram felizes, amavam um ao outro e viviam em harmonia. Mas surgiu uma hostilidade entre eles por causa de uma mulher, e Irmão Tigre e Irmão Homem se enfrentaram com tamanha violência que a Mãe Terra não pôde mais tolerar aquela discórdia e teve que mandar os dois para longe.
— Está explicado — brinquei.
O Sr. Kadam sorriu e continou:
— Irmão Tigre e Irmão Homem deixaram a casa da Mãe Terra e emergiram de uma passagem escura e muito profunda, saindo no interior da terra, no que diziam ser uma toca de pangolim. Vivendo juntos dentro da terra, os dois irmãos ainda lutavam todos os dias, até que por fim decidiram que seria melhor viverem separados. Irmão Tigre foi para o sul caçar na selva e Irmão Homem foi para o norte, cultivar o solo no vale. Se ficassem longe um do outro, então ambos estariam felizes. Mas, se um ultrapassasse os limites do território do outro, a luta recomeçava. Muito tempo depois, a lenda permanece viva. Se os descendentes do Irmão Homem deixam a selva em paz, Irmão Tigre também nos deixa em paz. Ainda assim, o tigre é nosso parente e dizem que, se você fitar os olhos de um tigre por bastante tempo, poderá reconhecer um espírito semelhante.
Minhas pálpebras se fechavam contra a minha vontade. Eu queria perguntar o que era um pangolim, mas minha boca não se movia e minhas pálpebras pesavam muito. Fiz um último esforço de permanecer desperta mudando de posição na cadeira, forçando os olhos a se abrirem.
O Sr. Kadam me olhava, pensativo.
— Um tigre branco é uma espécie muito especial. Ele é irremediavelmente atraído para uma pessoa, uma mulher, que tem grande apego às próprias convicções. Essa mulher terá grande força interior, a sabedoria para discernir o bem do mal e o poder para superar muitos obstáculos. Ela, que é chamada a caminhar com tigres...
Mergulhei no sono.
Quando acordei, a poltrona diante da minha estava vazia. Eu me aprumei e olhei à volta, mas não vi o Sr. Kadam em parte alguma. Desafivelei o cinto de segurança e saí à procura do banheiro.
Abrindo uma porta de correr, entrei em um banheiro surpreendentemente grande, em nada semelhante aos minúsculos banheiros de um avião comum. As luzes eram embutidas nas paredes e iluminavam suavemente os itens especiais do ambiente. Era decorado em tons de cobre, creme e ferrugem, que me agradavam mais do que o aspecto moderno e austero da cabine do avião.
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o chuveiro. Abri a porta de vidro para espiar lá dentro. Os belos azulejos ferrugem e creme eram dispostos em um lindo padrão. Havia dispensers com xampu, condicionador e sabonete líquido.
Um simples aperto ligava e desligava a ducha de cobre. Um grosso tapete creme cobria o belo piso de ladrilhos. De um lado, viam-se dois nichos verticais engastados na parede, repletos de macias toalhas brancas, penduradas em um suporte de cobre. Outro amplo compartimento exibia um roupão macio e sedoso, totalmente forrado, que parecia de caxemira. Logo abaixo dele, outro pequeno nicho guardava um par de pantufas de caxemira.
Uma pia funda, no formato de um retângulo estreito, tinha uma torneira de cobre e, de um lado, um dispenser com sabonete líquido, do outro, um com hidratante de lavanda.
Saí do banheiro e fui para minha poltrona confortável. O Sr. Kadam havia voltado e Nilima, a comissária de bordo, nos serviu um almoço com um aroma delicioso. Ela havia armado uma mesa entre nós e disposto dois pratos. Nilima ergueu as tampas sobre nossos pratos e anunciou:
— Hoje o almoço é linguado com cobertura de avelã, aspargos na manteiga, purê de batata com alho e torta de limão para sobremesa. O que gostariam de beber?
— Água com limão — respondi.
— O mesmo para mim — disse o Sr. Kadam.
Desfrutamos o almoço juntos. O Sr. Kadam me fez muitas perguntas sobre o Oregon. Ele parecia ter uma sede insaciável de aprender fatos novos e me perguntou sobre tudo, de esportes e política (assuntos que não domino) à flora e à fauna do estado.
Conversamos sobre o ensino médio, minha experiência no circo e minha cidade natal: as migrações de salmões, as fazendas de árvores de Natal, os mercados de produtores e os arbustos de amora que, de tão comuns, eram considerados erva daninha. Era fácil conversar com ele, pois era um bom ouvinte e me deixava à vontade. O pensamento de que ele seria um avô maravilhoso cruzou a minha mente. Não tive a chance de conhecer nenhum dos meus. Eles morreram antes de eu nascer, assim como minha outra avó.
Depois de terminarmos o almoço, Nilima voltou para tirar os pratos e eu a observei recolher a mesa. Quando ela apertou um botão, um motorzinho soou. A mesa retangular sem pernas inclinou-se para cima até se nivelar com a parede e então deslizou, embutindo-se no revestimento da parede. Nilima nos instruiu a afivelar os cintos pois logo chegaríamos a Nova York.
A descida foi tão suave quanto a decolagem. Enquanto reabastecíamos para a viagem até Mumbai, fui ver Ren. Depois de me certificar de que ele tinha comida e bebida suficientes, sentei-me no chão perto de sua jaula. Ele se aproximou e deixou-se cair bem ao meu lado. Suas costas estavam estiradas ao longo do comprimento da jaula, com o pelo listrado projetando-se pelas grades e fazendo cócegas em minhas pernas, e sua cabeça estava perto da minha mão.
Ri para ele, inclinei-me para acariciar o pelo de suas costas e recontei algumas das lendas de tigres que ouvira do Sr. Kadam. Sua cauda ficava chicoteando de um lado para outro, saindo e entrando pelas grades da jaula.
O tempo passou depressa e o avião logo estava pronto para decolar novamente. O Sr. Kadam já afivelava o cinto. Dei tapinhas no dorso de Ren e voltei para minha poltrona também.
Decolamos e o Sr. Kadam me advertiu de que esse seria um voo longo, de cerca de 16 horas, e que perderíamos um dia no calendário. Depois de atingirmos a altitude de cruzeiro, ele sugeriu que eu assistisse a um filme. Nilima me entregou uma lista de todos os filmes disponíveis e escolhi o mais longo deles: ...E o vento levou. Ela se dirigiu à área do bar, pressionou um botão na parede e uma grande tela branca deslizou, saindo da lateral do bar. Minha poltrona girou com facilidade, ficando de frente para a tela, e até reclinou-se, oferecendo um descanso para os pés. Então me acomodei e passei algumas horas na companhia de Scarlett e Rhett. Quando finalmente cheguei ao “Afinal, amanhã será outro dia”, fiquei de pé e me espreguicei.
Olhei pela janela e descobri que já estava escuro.
Eu tinha a sensação de que eram apenas cinco da tarde, mas calculei que deviam ser umas nove da noite no fuso horário em que nos encontrávamos.
Nilima surgiu, apressada, retornou a tela de cinema à posição anterior e então começou a pôr a mesa novamente.
— Muito obrigada por essas refeições deliciosas e pelo serviço maravilhoso — agradeci a ela.
— Isso mesmo. Obrigado, Nilima — disse o Sr. Kadam, piscando para ela, que inclinou a cabeça ligeiramente e saiu.
Mais uma vez partilhei um agradável jantar com o Sr. Kadam. Dessa vez conversamos sobre o seu país. Ele me contou muitos fatos interessantes e descreveu lugares fascinantes na Índia. Imaginei se teria tempo de conhecer tantas atrações. Ele falou de antigos guerreiros, poderosas fortalezas, invasores asiáticos e batalhas horríveis. Enquanto ele falava, eu tinha a sensação de que estava vendo e presenciando tudo aquilo.
Nilima nos serviu peito de frango recheado com abobrinha grelhada e uma salada. Eu me sentia bem comendo mais legumes e verduras, até que ela trouxe petits gateaux de sobremesa. Suspirei.
— Por que tudo que faz mal é sempre tão gostoso?
O Sr. Kadam riu.
— Você se sentiria melhor se dividíssemos um?
— Com certeza.
Cortei meu petit gâteau ao meio e passei a sua parte para um prato limpo.
Lambi a calda quente e espessa da colher. Que vida boa. Muito boa. Eu poderia me acostumar a isso.
Nas horas que se seguiram conversamos sobre nossos livros favoritos. Ele gostava de clássicos, como eu, e nos divertimos muito revisitando personagens memoráveis: Hamlet, Capitão Ahab, Dr. Frankenstein, Robinson Crusoé, Jean Valjean, Iago, Hester Prynne e o Sr. Darcy. Ele também me apresentou a alguns personagens indianos que pareciam interessantes, como Arjuna e Shakuntala, ou ainda Gengi, da literatura japonesa.
Reprimindo um bocejo, me levantei para dar outra olhada em Ren. Estendi a mão por entre as grades para acariciar-lhe a cabeça e coçar atrás de sua orelha.
O Sr. Kadam me observava e disse:
— Srta. Kelsey, não tem medo deste tigre? Não acha que ele possa machucá-la?
— Eu acho que ele pode me machucar, mas sei que não vai fazer isso. É difícil explicar, mas eu me sinto em segurança com ele, quase como se fosse um amigo e não um animal selvagem.
O Sr. Kadam não pareceu alarmado, apenas curioso. Ele falou baixinho com Nilima por um momento.
Ela se aproximou de mim e perguntou:
— Está pronta para dormir um pouco, senhorita?
Assenti e ela me mostrou onde minha bolsa havia sido guardada. Eu a apanhei e segui para o banheiro. Não fiquei lá muito tempo, mas nesse meio-tempo ela havia se ocupado bastante. Agora havia uma cortina dividindo a cabine e ela armara um sofá-cama que se transformou em um leito confortável com lençóis de cetim e travesseiros altos e macios. O avião estava escuro e ela me disse que o Sr. Kadam estaria do outro lado da cortina se eu precisasse de alguma coisa.
Fui dar uma rápida olhada na jaula do tigre. Ele me olhava, sonolento, a cabeça apoiada nas patas.
— Boa noite, Ren. Vejo você na Índia, amanhã.
Cansada demais para ler, enfiei-me debaixo das cobertas macias e sedosas, e me deixei ninar pelo zumbido das turbinas.
O cheiro de bacon me despertou. Espiei pelo canto e vi o Sr. Kadam sentado, lendo o jornal, com um copo de suco de maçã na mesa diante dele. Seu cabelo estava levemente molhado e ele já estava vestido para o dia.
— É melhor se aprontar, Srta. Kelsey. Chegaremos logo.
Peguei minha bolsa e segui para o luxuoso banheiro. Tomei um banho rápido, lavando os cabelos com o delicioso xampu com cheiro de rosas. Quando terminei, enrolei o cabelo com a toalha grossa e vesti o roupão de caxemira.
Soltei um profundo suspiro e me deixei desfrutar do tecido macio por um momento enquanto decidia o que vestir. Escolhi uma blusa vermelha e calça jeans e escovei o cabelo, prendendo-o em um rabo de cavalo amarrado com uma fita vermelha. Voltando apressada até o Sr. Kadam, afundei na poltrona de couro enquanto Nilima me trazia um prato de ovos, bacon e torradas.
Comi os ovos, belisquei uma torrada e bebi um pouco de suco de laranja, mas resolvi guardar o bacon para Ren. Enquanto Nilima desfazia a cama e a mesa do café da manhã, fui até a jaula com o petisco. Querendo tentá-lo, estendi um pedaço pela grade. Ele se aproximou, mordeu a extremidade da tira de bacon muito delicadamente, puxou-a da minha mão e então a engoliu de uma só vez.
— Nossa, Ren, você precisa mastigar. Espere aí, os tigres mastigam? Bem, pelo menos coma mais devagar.
Estendi os outros três pedaços, um por um. Ele engoliu os três e enfiou a língua pelas grades para lamber meus dedos.
Ri em silêncio e fui lavar as mãos. Então recolhi todos os meus pertences e guardei a bolsa no compartimento acima da cabeça. Eu acabara de fazer isso quando o Sr. Kadam se aproximou, apontou para a janela e disse:
— Srta. Kelsey, bem-vinda à Índia.
Entrei no estacionamento do circo e parei ao lado de um caminhão de tamanho médio. O veículo tinha um grosso para-brisa, rodas muito grandes e portas minúsculas. Atrás da cabine havia uma carroceria aberta, na qual se via uma estrutura quadrada de aço com um cortinado de lona cinza.
A rampa estava abaixada na traseira: o Sr. Davis colocava Ren na jaula. Ren usava uma coleira grossa no pescoço, firmemente presa a uma longa corrente que tanto o Sr. Davis quanto Matt seguravam com força. O tigre parecia muito calmo, apesar do caos que se desenrolava à sua volta. Ele me olhava, esperando paciente enquanto os homens preparavam o caminhão.
Por fim, tudo ficou pronto e, a um comando do Sr. Davis, Ren saltou para a caixa de metal. O Sr. Kadam pegou minha bolsa e passou a alça pelo ombro.
— Srta. Kelsey, prefere ir no caminhão com o motorista ou me acompanhar no conversível? — perguntou ele.
Olhei para o caminhão de rodas enormes e rapidamente tomei minha decisão.
— Prefiro acompanhar o senhor. Eu jamais trocaria um conversível por um caminhão desses.
Ele riu, concordando, antes de guardar minha bolsa no porta-malas do Bentley. Sabendo que era hora de ir, acenei para o Sr. Davis e para Matt, entrei novamente no conversível e afivelei o cinto de segurança. Antes que eu me desse conta, seguíamos pela rodovia interestadual atrás do caminhão.
Era difícil conversar por causa do vento, então eu simplesmente reclinei a cabeça para trás, apoiando-a no couro macio, e fiquei admirando a paisagem. Na verdade, seguíamos devagar – a 90 quilômetros por hora, cerca de 15 quilômetros abaixo do limite de velocidade daquela estrada.
Passantes curiosos desaceleravam para olhar nosso pequeno comboio. O trânsito foi se tornando mais pesado perto de Wilsonville, onde alcançamos os carros que haviam nos ultrapassado mais cedo.
O aeroporto ficava uns 30 quilômetros adiante, numa pequena estrada que saía da interestadual como a alça de uma xícara. O caminhão à nossa frente entrou na rua do aeroporto e então parou em uma rua lateral, atrás de uns hangares enormes. Vários aviões de carga estavam enfileirados ali, sendo carregados. O Sr. Kadam abriu caminho entre as pessoas e os equipamentos até alcançar um avião particular, em cuja lateral se lia Linhas Aéreas Tigre Voador, exibindo a imagem de um tigre correndo. Virei-me para o Sr. Kadam, apontei com a cabeça para o avião e disse:
— Tigre Voador, hein?
Ele sorriu.
— É uma longa história, Srta. Kelsey, que vou lhe contar no avião.
Tirando minha bolsa do porta-malas, ele entregou as chaves a um homem ali perto que imediatamente entrou no carro e o levou dali.
Nós dois ficamos observando enquanto vários trabalhadores corpulentos erguiam a caixa do tigre com uma empilhadeira motorizada e habilmente o transferiam para a jaula ampla e apropriada do avião.
Satisfeitos ao ver o tigre confortavelmente em segurança, subimos pela escada retrátil da aeronave e entramos.
Fiquei impressionada com a opulência do interior.
O avião era decorado em preto, branco e prateado, o que o fazia parecer muito moderno. As poltronas de couro preto pareciam bastante aconchegantes, bem diferentes dos assentos de aviões comerciais, e reclinavam completamente!
Uma comissária de bordo muito bonita, com cabelos pretos e longos, nos apontou os lugares e se apresentou:
— Meu nome é Nilima. Por favor, sente-se, Srta. Kelsey — disse ela, com um sotaque parecido com o do Sr. Kadam.
— Você também é indiana?
Nilima assentiu e sorriu para mim enquanto afofava um travesseiro atrás da minha cabeça. Em seguida, ela me trouxe um cobertor e várias revistas. O Sr. Kadam ocupou a espaçosa poltrona diante da minha. Ele afivelou logo o cinto de segurança, dispensando o travesseiro e o cobertor.
Eu viajara de avião umas poucas vezes antes, de férias com minha família. Durante o voo propriamente dito, em geral eu ficava bastante tranquila, mas decolagens e aterrissagens me deixavam tensa e ansiosa. O som das turbinas era o que mais me incomodava – o rugido ameaçador quando ganhavam vida – e a sensação de ser empurrada contra a cadeira enquanto o avião se descolava do chão sempre me deixava enjoada. As aterrissagens não eram mais divertidas, mas em geral eu estava tão ansiosa para saltar do avião que esse momento passava rapidinho.
O luxo do avião e do belo conversível me fizeram refletir sobre o empregador do Sr. Kadam. Deve ser alguém muito rico e poderoso na Índia. Tentei pensar em quem poderia ser, mas não consegui formular nenhum palpite.
Talvez seja um daqueles atores de Bollywood. Quanto dinheiro será que eles ganham? Não, não pode ser isso. O Sr. Kadam trabalha para ele há muito tempo, então o homem deve ser velho.
O avião ganhara velocidade e decolara enquanto eu ponderava sobre o misterioso empregador do Sr. Kadam. E eu nem percebera! Olhei pela janela e observei o Rio Colúmbia ir ficando cada vez menor até atravessarmos a camada de nuvens e eu não conseguir mais ver terra firme.
Cerca de uma hora e meia depois, já tendo lido uma revista inteira e terminado o sudoku e as palavras cruzadas das últimas páginas, deixei de lado a revista e olhei para o Sr. Kadam. Eu não queria incomodá-lo, mas tinha toneladas de perguntas.
Pigarreei. Ele respondeu sorrindo para mim acima da revista de atualidades. Naturalmente, a primeira coisa que me saiu pela boca foi a pergunta que menos me interessava.
— Então, Sr. Kadam, me fale sobre as Linhas Aéreas Tigre Voador.
Ele fechou a revista antes de pousá-la na mesa.
— Humm... por onde começar? Meu empregador era o proprietário e eu o administrador de uma empresa de carga aérea chamada Linhas Aéreas de Fretamento e Carga Tigre Voador, ou, encurtando, Linhas Aéreas Tigre Voador. Era a maior empresa de charter transatlântico nas décadas de 1940 e 1950. Voávamos para quase todos os continentes do mundo.
— De onde veio o nome Tigre Voador?
Ele mudou ligeiramente de posição na cadeira.
— Além de possuir certa afeição por tigres, meu empregador achava interessante o fato de que alguns dos primeiros pilotos haviam conduzido aviões “tigres” durante a Segunda Guerra Mundial. Talvez você se lembre de que eram pintados como tubarões-tigres a fim de parecerem ferozes na batalha. Mas, no fim da década de 1980, meu empregador resolveu vender a empresa. E manteve só um avião, este, para uso pessoal.
— Qual é o nome do seu empregador? Eu vou conhecê-lo?
Seus olhos brilharam.
— Com toda a certeza. Ele se apresentará quando você pousar na Índia. E vai gostar de conversar com você. — Ele desviou o olhar para os fundos do avião por um momento. Sorrindo com uma expressão encorajadora, ele olhou para mim e acrescentou: — Mais perguntas?
— Então o senhor é uma espécie de vice-presidente para ele?
O cavalheiro indiano achou graça.
— Digamos que ele é um homem muito rico que confia totalmente em mim para cuidar de seus assuntos profissionais.
— Ah, então o senhor é o Sr. Smithers e ele é o Sr. Burns.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Não entendi.
Corei e agitei a mão no ar.
— Deixe para lá. São personagens dos Simpsons. Provavelmente o senhor nunca viu a série.
— Infelizmente não, Srta. Kelsey.
O Sr. Kadam parecia ligeiramente desconfortável ou nervoso quando falava sobre seu patrão, mas gostava de falar de aviões, então eu o incentivei a continuar. Mudando de posição na cadeira, tirei os sapatos, cruzei as pernas e perguntei:
— Que tipo de carga vocês transportavam?
Ele relaxou visivelmente.
— Ao longo dos anos, a empresa transportou uma coleção e tanto de cargas interessantes. Por exemplo, ganhamos o contrato para carregar a famosa baleia assassina do Aquatic World, assim como a tocha da Estátua da Liberdade. Na maior parte do tempo, porém, a carga era bastante comum. Levamos coisas como enlatados, produtos têxteis e embalagens. Uma variedade e tanto, de fato.
— Como é que se coloca uma baleia em um avião?
— Uma nadadeira de cada vez, Srta. Kelsey. Uma nadadeira de cada vez.
O rosto do Sr. Kadam continuou sério. Eu ri com vontade. Enxugando uma lágrima no canto do olho, indaguei:
— Então o senhor administrava a empresa?
— Sim. Passei muito tempo desenvolvendo as Linhas Aéreas Tigre Voador. Gosto muito de aviação. — Ele fez um gesto, indicando a aeronave. — Estamos voando aqui no chamado MD-11, um McDonnell Douglas. Trata-se de um modelo de grande autonomia, o que é necessário quando se cruza o oceano. O interior é espaçoso e confortável, como deve ter notado. Ele tem duas turbinas sob as asas e uma terceira atrás, na base do estabilizador vertical.
— Humm, parece... poderoso.
Ele se inclinou um pouco para a frente e falou, entusiasmado:
— Embora este avião seja de um modelo mais antigo, ainda proporciona uma viagem muito rápida.
Ele havia se empolgado muito durante sua exposição técnica. A única coisa que gravei de todas aquelas explicações é que aquele era um avião muito bom e que aparentemente tinha três turbinas.
Ele deve ter percebido que eu não tinha a menor ideia do que ele estava falando, pois olhou para o meu rosto perplexo e deu uma risadinha.
— Talvez devêssemos falar sobre outro assunto. Quer conhecer alguns mitos da minha terra sobre os tigres?
Assenti com empolgação, incentivando-o a continuar. Joguei minhas pernas para o lado, sobre a poltrona. Então puxei o cobertor até o queixo e me recostei no travesseiro.
A entonação do Sr. Kadam mudou quando ele entrou no modo de contador de histórias. Seu sotaque indiano ficou mais pronunciado; as palavras, mais melódicas. Eu gostava de ouvir a cadência de sua voz.
— O tigre é considerado o grande protetor da selva. Vários mitos indianos atribuem grandes poderes ao animal. Ele combate bravamente imensos dragões, mas também ajuda camponeses. Uma de suas tarefas é deslocar nuvens de chuva com a cauda, pondo fim à seca que aflige aldeões humildes.
— Gosto muito de mitologia. As pessoas na Índia ainda acreditam nesses mitos sobre tigres?
— Sim, principalmente nas zonas rurais. Mas em todas as partes do país você vai encontrar quem acredite, mesmo entre aqueles que se consideram parte do mundo moderno. Você sabia que alguns afirmam que o ronronar de um tigre acaba com os pesadelos?
— O Sr. Davis disse que os tigres não ronronam. Ele contou que grandes felinos que rosnam e rugem não podem ronronar, mas eu juro que às vezes Ren ronrona.
— Ah, você está certa. A ciência moderna diz que o tigre não pode produzir o som que identificamos como ronronar. Vários dos grandes felinos emitem um som vibrante, mas não é exatamente a mesma coisa que o ronronar de um gato doméstico. Ainda assim, existem alguns mitos indianos que falam do ronronar do tigre. Diz-se também que o corpo de um tigre tem propriedades curativas únicas. Este é um dos motivos por que regularmente são caçados e mortos, e seus corpos, mutilados ou vendidos em partes.
Ele inclinou-se para trás na poltrona, relaxando.
— No islamismo, acredita-se que Alá irá enviar um tigre para defender e proteger aqueles que o seguirem fielmente, mas também enviará um tigre para punir aqueles que considera traidores.
— Acho que se eu fosse muçulmana fugiria de tigres, só por garantia.
Ele riu.
— Sim, muito sábio da sua parte. Confesso que absorvi parte do fascínio que meu empregador tem por tigres e estudei numerosos textos sobre a mitologia dos tigres indianos, em particular.
Ele deixou a voz morrer por um momento, perdido em pensamentos, os olhos vidrados. O dedo indicador esfregava um ponto na gola aberta e percebi que ele usava um pequeno pingente em forma de cunha numa corrente que estava parcialmente escondida sob a camisa.
Quando sua atenção se voltou outra vez para mim, ele baixou a mão para o colo e prosseguiu:
— Os tigres também são um símbolo de poder e imortalidade. Diz-se que podem derrotar o mal por vários meios. São chamados doadores de vida, sentinelas, guardiões e defensores.
Estiquei as pernas e acomodei melhor a cabeça no travesseiro.
— Existe algum tipo de lenda com tigres do tipo “donzela em perigo”?
Ele pensou um pouco.
— Ah, sim. Na verdade, uma das minhas histórias favoritas é sobre um tigre branco que cria asas e salva a princesa que o ama de um destino cruel. Levando-a nas costas, eles abrem mão de suas formas corpóreas e se tornam uma única risca branca subindo para o céu, finalmente juntando-se às estrelas da Via Láctea. Juntos, eles passam a eternidade vigiando e protegendo as pessoas na Terra.
Bocejei, sonolenta.
— Isso é muito bonito. Acho que é a minha preferida também.
Sua voz suave e melódica havia me relaxado. Apesar de meus esforços para ficar acordada e ouvir, eu estava caindo no sono.
Ele continuou, sem se abalar:
— Em Nagaland, o povo acredita que tigres e homens são irmãos. De acordo com uma lenda, a Mãe Terra era a mãe do tigre e também do homem. Houve um tempo em que os dois irmãos eram felizes, amavam um ao outro e viviam em harmonia. Mas surgiu uma hostilidade entre eles por causa de uma mulher, e Irmão Tigre e Irmão Homem se enfrentaram com tamanha violência que a Mãe Terra não pôde mais tolerar aquela discórdia e teve que mandar os dois para longe.
— Está explicado — brinquei.
O Sr. Kadam sorriu e continou:
— Irmão Tigre e Irmão Homem deixaram a casa da Mãe Terra e emergiram de uma passagem escura e muito profunda, saindo no interior da terra, no que diziam ser uma toca de pangolim. Vivendo juntos dentro da terra, os dois irmãos ainda lutavam todos os dias, até que por fim decidiram que seria melhor viverem separados. Irmão Tigre foi para o sul caçar na selva e Irmão Homem foi para o norte, cultivar o solo no vale. Se ficassem longe um do outro, então ambos estariam felizes. Mas, se um ultrapassasse os limites do território do outro, a luta recomeçava. Muito tempo depois, a lenda permanece viva. Se os descendentes do Irmão Homem deixam a selva em paz, Irmão Tigre também nos deixa em paz. Ainda assim, o tigre é nosso parente e dizem que, se você fitar os olhos de um tigre por bastante tempo, poderá reconhecer um espírito semelhante.
Minhas pálpebras se fechavam contra a minha vontade. Eu queria perguntar o que era um pangolim, mas minha boca não se movia e minhas pálpebras pesavam muito. Fiz um último esforço de permanecer desperta mudando de posição na cadeira, forçando os olhos a se abrirem.
O Sr. Kadam me olhava, pensativo.
— Um tigre branco é uma espécie muito especial. Ele é irremediavelmente atraído para uma pessoa, uma mulher, que tem grande apego às próprias convicções. Essa mulher terá grande força interior, a sabedoria para discernir o bem do mal e o poder para superar muitos obstáculos. Ela, que é chamada a caminhar com tigres...
Mergulhei no sono.
Quando acordei, a poltrona diante da minha estava vazia. Eu me aprumei e olhei à volta, mas não vi o Sr. Kadam em parte alguma. Desafivelei o cinto de segurança e saí à procura do banheiro.
Abrindo uma porta de correr, entrei em um banheiro surpreendentemente grande, em nada semelhante aos minúsculos banheiros de um avião comum. As luzes eram embutidas nas paredes e iluminavam suavemente os itens especiais do ambiente. Era decorado em tons de cobre, creme e ferrugem, que me agradavam mais do que o aspecto moderno e austero da cabine do avião.
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o chuveiro. Abri a porta de vidro para espiar lá dentro. Os belos azulejos ferrugem e creme eram dispostos em um lindo padrão. Havia dispensers com xampu, condicionador e sabonete líquido.
Um simples aperto ligava e desligava a ducha de cobre. Um grosso tapete creme cobria o belo piso de ladrilhos. De um lado, viam-se dois nichos verticais engastados na parede, repletos de macias toalhas brancas, penduradas em um suporte de cobre. Outro amplo compartimento exibia um roupão macio e sedoso, totalmente forrado, que parecia de caxemira. Logo abaixo dele, outro pequeno nicho guardava um par de pantufas de caxemira.
Uma pia funda, no formato de um retângulo estreito, tinha uma torneira de cobre e, de um lado, um dispenser com sabonete líquido, do outro, um com hidratante de lavanda.
Saí do banheiro e fui para minha poltrona confortável. O Sr. Kadam havia voltado e Nilima, a comissária de bordo, nos serviu um almoço com um aroma delicioso. Ela havia armado uma mesa entre nós e disposto dois pratos. Nilima ergueu as tampas sobre nossos pratos e anunciou:
— Hoje o almoço é linguado com cobertura de avelã, aspargos na manteiga, purê de batata com alho e torta de limão para sobremesa. O que gostariam de beber?
— Água com limão — respondi.
— O mesmo para mim — disse o Sr. Kadam.
Desfrutamos o almoço juntos. O Sr. Kadam me fez muitas perguntas sobre o Oregon. Ele parecia ter uma sede insaciável de aprender fatos novos e me perguntou sobre tudo, de esportes e política (assuntos que não domino) à flora e à fauna do estado.
Conversamos sobre o ensino médio, minha experiência no circo e minha cidade natal: as migrações de salmões, as fazendas de árvores de Natal, os mercados de produtores e os arbustos de amora que, de tão comuns, eram considerados erva daninha. Era fácil conversar com ele, pois era um bom ouvinte e me deixava à vontade. O pensamento de que ele seria um avô maravilhoso cruzou a minha mente. Não tive a chance de conhecer nenhum dos meus. Eles morreram antes de eu nascer, assim como minha outra avó.
Depois de terminarmos o almoço, Nilima voltou para tirar os pratos e eu a observei recolher a mesa. Quando ela apertou um botão, um motorzinho soou. A mesa retangular sem pernas inclinou-se para cima até se nivelar com a parede e então deslizou, embutindo-se no revestimento da parede. Nilima nos instruiu a afivelar os cintos pois logo chegaríamos a Nova York.
A descida foi tão suave quanto a decolagem. Enquanto reabastecíamos para a viagem até Mumbai, fui ver Ren. Depois de me certificar de que ele tinha comida e bebida suficientes, sentei-me no chão perto de sua jaula. Ele se aproximou e deixou-se cair bem ao meu lado. Suas costas estavam estiradas ao longo do comprimento da jaula, com o pelo listrado projetando-se pelas grades e fazendo cócegas em minhas pernas, e sua cabeça estava perto da minha mão.
Ri para ele, inclinei-me para acariciar o pelo de suas costas e recontei algumas das lendas de tigres que ouvira do Sr. Kadam. Sua cauda ficava chicoteando de um lado para outro, saindo e entrando pelas grades da jaula.
O tempo passou depressa e o avião logo estava pronto para decolar novamente. O Sr. Kadam já afivelava o cinto. Dei tapinhas no dorso de Ren e voltei para minha poltrona também.
Decolamos e o Sr. Kadam me advertiu de que esse seria um voo longo, de cerca de 16 horas, e que perderíamos um dia no calendário. Depois de atingirmos a altitude de cruzeiro, ele sugeriu que eu assistisse a um filme. Nilima me entregou uma lista de todos os filmes disponíveis e escolhi o mais longo deles: ...E o vento levou. Ela se dirigiu à área do bar, pressionou um botão na parede e uma grande tela branca deslizou, saindo da lateral do bar. Minha poltrona girou com facilidade, ficando de frente para a tela, e até reclinou-se, oferecendo um descanso para os pés. Então me acomodei e passei algumas horas na companhia de Scarlett e Rhett. Quando finalmente cheguei ao “Afinal, amanhã será outro dia”, fiquei de pé e me espreguicei.
Olhei pela janela e descobri que já estava escuro.
Eu tinha a sensação de que eram apenas cinco da tarde, mas calculei que deviam ser umas nove da noite no fuso horário em que nos encontrávamos.
Nilima surgiu, apressada, retornou a tela de cinema à posição anterior e então começou a pôr a mesa novamente.
— Muito obrigada por essas refeições deliciosas e pelo serviço maravilhoso — agradeci a ela.
— Isso mesmo. Obrigado, Nilima — disse o Sr. Kadam, piscando para ela, que inclinou a cabeça ligeiramente e saiu.
Mais uma vez partilhei um agradável jantar com o Sr. Kadam. Dessa vez conversamos sobre o seu país. Ele me contou muitos fatos interessantes e descreveu lugares fascinantes na Índia. Imaginei se teria tempo de conhecer tantas atrações. Ele falou de antigos guerreiros, poderosas fortalezas, invasores asiáticos e batalhas horríveis. Enquanto ele falava, eu tinha a sensação de que estava vendo e presenciando tudo aquilo.
Nilima nos serviu peito de frango recheado com abobrinha grelhada e uma salada. Eu me sentia bem comendo mais legumes e verduras, até que ela trouxe petits gateaux de sobremesa. Suspirei.
— Por que tudo que faz mal é sempre tão gostoso?
O Sr. Kadam riu.
— Você se sentiria melhor se dividíssemos um?
— Com certeza.
Cortei meu petit gâteau ao meio e passei a sua parte para um prato limpo.
Lambi a calda quente e espessa da colher. Que vida boa. Muito boa. Eu poderia me acostumar a isso.
Nas horas que se seguiram conversamos sobre nossos livros favoritos. Ele gostava de clássicos, como eu, e nos divertimos muito revisitando personagens memoráveis: Hamlet, Capitão Ahab, Dr. Frankenstein, Robinson Crusoé, Jean Valjean, Iago, Hester Prynne e o Sr. Darcy. Ele também me apresentou a alguns personagens indianos que pareciam interessantes, como Arjuna e Shakuntala, ou ainda Gengi, da literatura japonesa.
Reprimindo um bocejo, me levantei para dar outra olhada em Ren. Estendi a mão por entre as grades para acariciar-lhe a cabeça e coçar atrás de sua orelha.
O Sr. Kadam me observava e disse:
— Srta. Kelsey, não tem medo deste tigre? Não acha que ele possa machucá-la?
— Eu acho que ele pode me machucar, mas sei que não vai fazer isso. É difícil explicar, mas eu me sinto em segurança com ele, quase como se fosse um amigo e não um animal selvagem.
O Sr. Kadam não pareceu alarmado, apenas curioso. Ele falou baixinho com Nilima por um momento.
Ela se aproximou de mim e perguntou:
— Está pronta para dormir um pouco, senhorita?
Assenti e ela me mostrou onde minha bolsa havia sido guardada. Eu a apanhei e segui para o banheiro. Não fiquei lá muito tempo, mas nesse meio-tempo ela havia se ocupado bastante. Agora havia uma cortina dividindo a cabine e ela armara um sofá-cama que se transformou em um leito confortável com lençóis de cetim e travesseiros altos e macios. O avião estava escuro e ela me disse que o Sr. Kadam estaria do outro lado da cortina se eu precisasse de alguma coisa.
Fui dar uma rápida olhada na jaula do tigre. Ele me olhava, sonolento, a cabeça apoiada nas patas.
— Boa noite, Ren. Vejo você na Índia, amanhã.
Cansada demais para ler, enfiei-me debaixo das cobertas macias e sedosas, e me deixei ninar pelo zumbido das turbinas.
O cheiro de bacon me despertou. Espiei pelo canto e vi o Sr. Kadam sentado, lendo o jornal, com um copo de suco de maçã na mesa diante dele. Seu cabelo estava levemente molhado e ele já estava vestido para o dia.
— É melhor se aprontar, Srta. Kelsey. Chegaremos logo.
Peguei minha bolsa e segui para o luxuoso banheiro. Tomei um banho rápido, lavando os cabelos com o delicioso xampu com cheiro de rosas. Quando terminei, enrolei o cabelo com a toalha grossa e vesti o roupão de caxemira.
Soltei um profundo suspiro e me deixei desfrutar do tecido macio por um momento enquanto decidia o que vestir. Escolhi uma blusa vermelha e calça jeans e escovei o cabelo, prendendo-o em um rabo de cavalo amarrado com uma fita vermelha. Voltando apressada até o Sr. Kadam, afundei na poltrona de couro enquanto Nilima me trazia um prato de ovos, bacon e torradas.
Comi os ovos, belisquei uma torrada e bebi um pouco de suco de laranja, mas resolvi guardar o bacon para Ren. Enquanto Nilima desfazia a cama e a mesa do café da manhã, fui até a jaula com o petisco. Querendo tentá-lo, estendi um pedaço pela grade. Ele se aproximou, mordeu a extremidade da tira de bacon muito delicadamente, puxou-a da minha mão e então a engoliu de uma só vez.
— Nossa, Ren, você precisa mastigar. Espere aí, os tigres mastigam? Bem, pelo menos coma mais devagar.
Estendi os outros três pedaços, um por um. Ele engoliu os três e enfiou a língua pelas grades para lamber meus dedos.
Ri em silêncio e fui lavar as mãos. Então recolhi todos os meus pertences e guardei a bolsa no compartimento acima da cabeça. Eu acabara de fazer isso quando o Sr. Kadam se aproximou, apontou para a janela e disse:
— Srta. Kelsey, bem-vinda à Índia.